• Sem categoria

Referendo

A questão da votação sobre o comércio de armas no Brasil tem dividido a opinião pública e à medida que o tempo passa as pessoas se sentem mais e mais confusas a respeito de como votar. Votaremos a favor do sim, impedindo assim os cidadãos de comprar uma arma de forma legal, arma que pode ser rastreada no caso de um roubo ou de mau uso? Votaremos a favor do não, permitindo que mais e mais pessoas carreguem armas de fogo, guardando-as em suas casas e porta-luvas dos carros, prontas para serem usadas ao menor sinal da raiva?

Ler jornais, ver as propagandas nos canais de televisão, ouvir as opiniões daqueles aos quais nutrimos alguma consideração ou autoridade para opinar sobre tão difícil questão, sejam artistas ou delegados, apenas têm aumentado a confusão. O fato é que todos os setores estão divididos e ambos têm argumentos bastante razoáveis. Mesmo aqueles que buscam ajuda nas autoridades religiosas também esbarram no dilema de ora ouvir, de um lado, sentimentalismos vagos a favor da “paz” (o que justificaria, aparentemente, votar a favor do não ao comércio) e, de outro, o erguimento de bandeiras exaltadas a favor da “liberdade” (o que justificaria, aparentemente, o “direito” do cidadão em possuir uma arma), isso quando não encontramos apenas o silêncio da não opinião.

Eu não posso dizer com certeza como o Buddha e seus arahants resolveriam a questão e quais seriam seus votos, mas creio que alguma coisa possa ser dita, e que jaz no fundo do dilema, não só em relação ao “sim ou não”, mas ao próprio fato de haver tanta confusão e dificuldade em escolher.

Se fosse perguntado se um buddhista ou qualquer admirador dos ensinamentos do Buddha deveria comercializar armas a resposta seria, na verdade, bastante simples. O Buddha expõe claramente que o comércio de armas é uma das ocupações que se classifica como “meio de vida incorreto ou impróprio”. Responder “sim” à comercialização é claramente aprovar que buddhistas comercializem armas ou, um tanto que hipocritamente, apoiar que não-buddhistas as vendam, em outras palavras, que eles cometam o mau karma. ‘Eles que o façam, não eu’. Ambas as atitudes não exatamente em conformidade com aquilo que o Buddha ensinou.

Responder “sim” à comercialização colaborará com mais armas circulando entre a população, além de apoiar uma atitude condenada pelo Buddha (a comercialização em si), aumentando então o risco de mortes acidentais (um dos grandes argumentos da turma da proibição que mostram criancinhas sendo mortas por irmaozinhos mais velhos que pegaram a arma do papai que estava no guardaroupa), mortes originadas por reação a assaltos, mortes causadas por arroubos de paixão e ódio e mortes derivadas do roubo das armas legalizadas. Acontece que, entretanto, responder “não” à comercialização provavelmente privará um outro tanto de vidas: dos policiais, juízes, testemunhas e outros, aposentados ou na ativa, os quais são ameaçados de morte, juntamente com sua família, por bandidos que ajudaram a condenar e suas gangues; aos caminhoeiros e profissionais que viajam por esse Brasil nas regiões mais distantes, em estradas desertas, e cuja única chance de evitar a morte ou sequestro seja aquela pequena arma guardada; aos fazendeiros, pescadores e pequenos agricultores que isolados de toda civilização nada têm senão sua arma para se defender de bandidos prontos a invadir e abusar de suas famílias; tudo isso porque alguém que deseja cometer um crime obviamente não vai comprar uma arma legalizada, e, portanto, não está nem aí para a proibição de seu comércio.

O problema não está na questão de “sim ou não”. Todo o referendo é um grande engodo na realidade, pois o modo como a questão é feita não serve para o propósito em que ela foi feita. Na época do Buddha, durante várias ocasiões, pessoas vinham a ele perguntar sobre algumas questões que mais tarde ficaram conhecidas como perguntas indeterminadas, como “o mundo é eterno ou não”, “o mundo é finito ou infinito”, “a vida é uma coisa e o corpo é outra”, “o Tathagata existe ou não após a morte”, etc. A elas o Buddha se recusava de responder. E por que? Não porque ele não sabia a resposta, mas porque o modo como eram colocadas era incorreto, não permitindo uma resposta adequada. Essas perguntas não são “respondíveis”, faltam elementos, os itens precisam ser refraseados e mesmo definidos de outra forma. Tal como são colocados, qualquer resposta está errada, e é por isso que as pessoas tem dificuldade em responder e mudam de opinião a cada momento.

O propósito da votação é a diminuição da violência. Mas a pergunta sobre a comercialização, ou não, responde senão a uma ínfima parcela do propósito da questão, que passa por intrincadas questões sociais, econômicas e políticas. “Sim” e “não”, ambos, continuarão a causar mortes, e qualquer alteração na violência estará sempre ligada a muitos fatores, fatores estes que ficam obscurecidos pelo referendo. Neste, um governo incompetente busca fazer crer ao povo que este está decidindo pelo futuro da violência no país. Se “sim” e “não”, qualquer das decisões servirá para justificar o aumento ou diminuição da violência como sendo culpa do povo que votou. ‘Foi isso que o povo decidiu’ será a frase escolhida para justificar porque a violência e as mortes por armas de fogo não diminuíram, “independentemente” de o resultado do referendo ter sido “sim” e “não”.

Ajahn Buddhadasa diz que “todos os problemas do mundo devem ser resolvidos pelo método da compreensão correta“. A violência e as mortes no Brasil serão diminuídas pela mudança na “cultura” brasileira sobre a impunidade, sobre as iniciativas de educação real e efetiva da população como um todo, no controle estrito das fronteiras, na punição exemplar daqueles que devem ser punidos, nas corregedorias aplicadas à polícia, no exemplo dado pelos e aos políticos (que inventaram o tal referendo), na completa reformulação da política social e distribuição econômica e mais um sem-número de itens. Fazer um referendo de uma pergunta mal colocada, além de gastar o dinheiro do povo, é apenas jogar uma minhoca de borracha para um peixe ingênuo. Ela é sem gosto e dentro tem um anzol. Muitos já perceberam o disparate e absurdo da questão colocada. Mas nesse mundo de dualidades, as pessoas sentem que “sim” e “não” são as duas alternativas possíveis. “Sim” e “não” serão votados porque é isso que as pessoas aprenderam a fazer.

Essa é uma das estratégias maquiavélicas mais velhas da humanidade. “Ei! Você quer comer lombo assado ou picanha defumada? Se não quiser o lombo, vai ficar com a picanha, ok?” Meu amigo, eu gosto é de pizza, e sem carne! E se não dá para escolher um outro país (como eu faria com um restaurante que me desse apenas essas duas alternativas), pelo menos me reservo o direito de falar com o gerente e de dizer que se ele não sabe cozinhar adequadamente, deveria pelo menos aprender melhor a montar um cardápio.

Aqueles que desejarem expressar alguma opinião sobre o assunto, sugiro que o façam aqui.

dhanapala

Este é o blog pessoal de Ricardo Sasaki, psicoterapeuta, palestrante e professor autorizado na tradição buddhista theravada (Upasaka Dhanapala) e mahayana (Ryuyo Sensei), tradutor, autor e editor de vários livros, com um grande interesse na promoção e desenvolvimento de meios hábeis que colaborem na diminuição real do sofrimento dos seres, principalmente aqueles inspirados nos ensinamentos do Buddha. Dirige o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda e escreve no blog Folhas no Caminho. É também um dos professores do Numi - Núcleo de Mindfulness para o qual escreve regularmente. Para perguntas sobre o buddhismo, estudos em grupo e sugestões para esta coluna, pode ser contactado aqui: biolinky.co/ricardosasaki

Você pode gostar...