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Produtos preciosos

Para que ninguém comece a pensar, após ler de Chuvas e Tempestades, que tenho poderes climáticos de mudança do tempo, é preciso admitir que nem sempre isso ocorre. Quando em Massachusetts, peguei uma temperatura de frio e neve que foi a pior em 15 anos. Quando em Chicago, no dia em que cheguei, como decorrência de uma chuva torrencial, houve a pior enchente dos últimos 60 anos. Em Los Angeles já tive o prazer de acordar com um terremoto (digo prazer porque é curiosíssimo abrir os olhos e ver tudo balançando ao redor, e por ninguém ter ficado ferido na cidade – com exceção de uma pessoa que morreu por um muro ter caído por onde passava). Na Thailândia eu estava lá no dia do fatídico tsunami de 2004. Já compreenderam, não?

E é claro que também aquelas coisas menores como as férias na praia, programadas para o tempo firme da época, já resultaram em dias infindáveis de chuva. Quando decidi visitar o Khao Yai Park, estava consciente de que era época das chuvas na Thailândia. Se chovesse todos os dias e eu tivesse que ficar todo o tempo no chalé sem de lá nada visitar, tudo bem. Sem expectativas e com um bom suprimento de material de leitura, a vida não poderia ser melhor. Mas as pessoas podem não se sentir tão bem quando aquelas férias na praia, ensolarada até um dia antes da viagem, manifesta-se como ininterruptas lágrimas dos anjos lá de cima. Expectativas frustram. Expectativas fazem sofrer aqueles que contam com o peixe antes de ir pescar.

Para os que estão familiarizados com os ensinamentos do Buddha, isso não é novidade. Expectativas são formas de desejo, esperanças que temos de que isso ou aquilo ocorra. São os planos e imaginações que temos, frutos do desejo. E o desejo infundado abre as portas para o sofrimento. Tanhapaccaya dukkha, já dizia o Buddha, “tendo o desejo sedento como condição, eis que surge dukkha“.

Mas o que dizer quando naquelas mesmas férias na praia, o clima bom dos dias antes da viagem se confirma quando da chegada, as ondas estão apropriadas para sua iniciação no surf, a cidade é calma, pessoas simpáticas à sua volta, e você alegremente se dirige para seu hotel, aquele em que você fez a reserva muitas semanas antes, e no hall de entrada o gerente lhe diz que: “Sinto muito, mas alguém chegou antes com uma oferta melhor pelo quarto” ou te dá um quarto que nada tem a ver com a reserva feita. Ele te dá um sorrisinho, diz que não tem vaga, mas terá o maior prazer em servi-lo em suas próximas férias, te dá as costas e vai cuidar de suas camélias. !!! Alguém no Brasil já teve a experiência de ligar para as companhias de telefone, e ouvir aquelas mensagens eletrônicas que dizem: “Seu telefonema é muito importante para nós, sentimos orgulho de tê-lo como cliente, por favor, dentro de instantes você será atendido“, e pela próxima meia-hora você espera com o fone no ouvido até que desiste? …. Existe alguém no Brasil que já não teve essa experiência??

Aqui nos defrontamos com algo diferente da mera expectativa. O clima é imprevisível. Esperar que faça um tempo ótimo quando de suas férias, é pensamento desejoso. Ter expectativas que no futuro isso ou aquilo ocorra, só leva ao sofrimento. Mas o gerente te fazer uma dessas? Não era suposto que gerentes fossem pessoas confiáveis? Que o hotel segurasse sua reserva? Afinal, para quê fazer reserva? Deveríamos nos comportar a partir da premissa de que as pessoas não são confiáveis? Se por um lado sabemos que ter expectativas é algo que abre o espaço para o sofrimento surgir, por outro lado será que deveríamos partir para a praia na incerteza de se o hotel cumprirá com a reserva ou não? Deveríamos chegar no aeroporto já na dúvida se vamos embarcar ou não (descontando, é claro, os problemas técnicos usuais), pois a empresa pode decidir dar um dia livre para os funcionários? E quando no avião, faz parte do não ter expectativas o estar aberto para ao invés de chegar em Recife como previsto, você ir parar em Pelotas? Claro que não!

Nesses casos, não podemos confundir expectativa com certas coisas frequentemente esquecidas em nossa sociedade: confiança e integridade. São produtos raros e preciosos. Todas as relações humanas sadias são baseadas nessas duas coisas. Não é uma questão de ter ou não expectativas para o futuro quando paro num posto de gasolina e espero ter gasolina sendo posta no meu tanque, e não suco azedo de limão. Não se supõe que outra coisa seja colocada quando o que compro é gasolina. Se compro uma passagem para Recife, isso não significa que, sendo buddhista, devo esperar por parar em qualquer outro lugar do mundo que não seja Recife como meu destino final. Então confiança e integridade são o cerne das relações sociais, na falta das quais o mundo se esfacela. Se por um lado não devemos ter expectativas com relação às pessoas, não significa por isso que seria correto o esperar qualquer comportamento vindo delas.

Se o posto coloca suco de limão no tanque do indivíduo, e a companhia aérea o deixa em Pelotas (quando ele comprou uma passagem para Recife), o que se pode pensar deles? Quando o gerente do hotel te dá aquele sorrisinho, e diz que dessa vez não deu, mas terá o maior prazer em servi-lo em suas próximas férias, você olha estupefato para ele e… creio que depende da maturidade de cada um o que se faz ou não depois disso. Mas não dá pra entender porque o Buddha hesitou em começar a ensinar o Dhamma?

dhanapala

Este é o blog pessoal de Ricardo Sasaki, psicoterapeuta, palestrante e professor autorizado na tradição buddhista theravada (Upasaka Dhanapala) e mahayana (Ryuyo Sensei), tradutor, autor e editor de vários livros, com um grande interesse na promoção e desenvolvimento de meios hábeis que colaborem na diminuição real do sofrimento dos seres, principalmente aqueles inspirados nos ensinamentos do Buddha. Dirige o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda e escreve no blog Folhas no Caminho. É também um dos professores do Numi - Núcleo de Mindfulness para o qual escreve regularmente. Para perguntas sobre o buddhismo, estudos em grupo e sugestões para esta coluna, pode ser contactado aqui: biolinky.co/ricardosasaki

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3 Resultados

  1. Anonymous disse:

    Sem dúvida… e depois ainda querem reclamar dos políticos.
    É interessante também observar nossa reação quando atingidos por tal tipo de comportamento. Difícil não ficar remoendo a situação, apegado a estados mentais pouco salubres, e reagir a partir deles é fácil fácil. Sati e Sila, acho que é por aí…
    Suas reflexões neste espaço tem sido bem úteis, de grande contribuição.

    Metta,

    Fernando

  2. Dhanapala disse:

    Pois é, Fernando. No sutta que vc aponta tem a frase: “Ele que obtém sua fortuna sem prejudicar aos outros, como uma abelha que coleta o néctar”. Parece que se tornou moda que a felicidade e o ganho pessoal sejam colocados na frente não importando o que isso possa significar para o mundo em torno. Entre ter um ganho pessoal às custas da integridade ou manter uma conduta apropriada e respeitosa em relação aos outros e ao ambiente ainda que implicando alguma perda pessoal, não há dúvida que a maioria hoje escolhe a primeira opção.

  3. Anonymous disse:

    Acabo de sentir na pele a falta das “duas preciosidades”. Mudei de casa e ao acertar o contrato de um novo aluguel, a imobiliária me informou um valor X de condomínio. Depois de duas semanas de gasto financeiro e emocional de uma mudança, recebo o boleto do condomínio… simplesmente 3X superior ao valor informado. Haja “maturidade” e almofada para lidar com um profissional desse tipo.
    Normalmente esquecemos de aperfeiçoar Sila em nosso treinamento, achando que meditar é o caminho completo para atingir a sabedoria. Cada vez mais, como aqui colocado nos últimos posts, devemos estar atentos ao nosso comportamento no dia a dia.
    Deixo o link para um ótimo Sutta:
    http://www.acessoaoinsight.net/sutta/DN31.php
    Metta,

    Fernando