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Migalhas e Pipas

Dias atrás…

É muito bom ter uma convivência diária com muitos animais. Todos os dias temos bodes, vacas, macacos, esquilos, búfalos e galinhas andando entre nós. Bodes engordam para serem mais tarde sacrificados em algum templo hindu; vacas são intocadas por serem sagradas, macacos roubam bananas de nossas mãos (uma outra vez um surgiu de não sei aonde e roubou das minhas mãos três bananas destinadas a serem meu lanche), búfalos puxam o arado e as galinhas…. ora, as galinhas olham pro chão e ciscam. Incessantemente, hora a hora, dia a dia, elas voltam sua atenção para catar as migalhas do chão.

E como nesses dias tenho acompanhado um arqueólogo que tira fotos de sítios arqueológicos através de pipas (papagaios como alguns hão de conhecer), tornou-se comum ver os aldeões (e, claro, nós mesmos) se apinharem sempre que o “homem da pipa” chega, para olharem boquiabertos a pipa subir, lá no alto, ao sabor dos ventos de Bihar (o nome do estado vem do pali Vihara, por ser uma região povoada de templos!). Pelo menos metade do vilarejo deve acabar se acumulando aos poucos ao nosso redor e esse deve ser o evento do dia no passar cadenciado das horas, ou ainda, deve ser o evento da semana ou do mês! Assunto para muitas conversas à beira da fogueira tomando um chai. “Como aquilo pode voar? Pra que aquele homem branco faz isso? Porque alguém iria querer tirar fotos do nosso vilarejo, tremendamente comum e igual a todos os outros?”, devem ser algumas das perguntas. Ou talvez nenhuma delas, somente o olhar maravilhado de ver algo voando. A atração sem palavras e magnética pelo vôo, pelo céu, pela liberdade.


Na simplicidade avassaladora de suas vidas e nas alegrias simples de ver uma pipa voando, a imagem das galinhas eclode na mente. Por quanto tempo iremos olhar para o chão, catando migalhas? Os seres andam pelo mundo à procura de tão pouco. Muito esforço, angústia e trabalho para doses tão pequenas de prazer momentâneo, um pouco de conhecimento e reconhecimento, um pouco de amor aqui e ali, um pouco de atenção, um pouco de segurança… Migalhas. Só migalhas.

O grande mestre thailandês Ajahn Chah costumava dizer que se você quiser ter uma pequena felicidade, deve soltar um pouco. Se quiser ter grande felicidade, deve soltar bastante. Se quiser ter completa felicidade, deve soltar completamente. E se ao invés de andarmos pelo mundo à cata de migalhas, déssemos linha à nossa pipa, ver o mundo e a vida desde uma perspectiva mais ampla, tão ampla quanto o céu que a tudo abarca? Lá do alto, ao sabor dos ventos de Bihar, continuaríamos obcecados por buscar em tudo migalhas de liberdade, pedaços de afeto e conhecimentos transitórios?

dhanapala

Este é o blog pessoal de Ricardo Sasaki, psicoterapeuta, palestrante e professor autorizado na tradição buddhista theravada (Upasaka Dhanapala) e mahayana (Ryuyo Sensei), tradutor, autor e editor de vários livros, com um grande interesse na promoção e desenvolvimento de meios hábeis que colaborem na diminuição real do sofrimento dos seres, principalmente aqueles inspirados nos ensinamentos do Buddha. Dirige o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda e escreve no blog Folhas no Caminho. É também um dos professores do Numi - Núcleo de Mindfulness para o qual escreve regularmente. Para perguntas sobre o buddhismo, estudos em grupo e sugestões para esta coluna, pode ser contactado aqui: biolinky.co/ricardosasaki

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6 Resultados

  1. Dhanapala disse:

    Não conheço essa estória da águia e da galinha não. Como é?

  2. Daniel disse:

    Uma postagem inspiradora!

    Já pensei algo parecido vendo grandes cidades do avião: tudo é tão pequeno, imagina como é, cada pessoa pensando em si, vivendo num pedacinho de mundo.

    Já ouviram falar daquela metáfora da águia e da galinha de Leonardo Boff?

  3. Dhanapala disse:

    Obrigado pela visita de vocês!

  4. Luide disse:

    Excelente! Mais um texto do Folhas que já imprimi para guardar e fazer posteriores releituras para reavivar a inspiração que tive com a primeira leitura .

  5. Anonymous disse:

    Estive pensando sobre isso enquanto olhava o mar, pensava no oceano e no mistério das águas. Estive pensando na imensidão desse universo e nos desejos humanos. Caminhando pela praia vim pensando que os desejos nos limitam. Fazem que a gente se reduza ou aumente e na aspiração de realizá-los, eles, os desejos, vão dando direção as nossas vidas. Pensei, será possível viver sem desejos? Creio que não, é da natureza humana ter desejos. Mas podemos nos libertar desse mister impiedoso se trabalharmos o desapego. Existe a solução. Fácil não é, porém, vamos tentando.

    Josane

  6. Anonymous disse:

    Você tem vivido e escrito belos momentos que nos faz refletir e sentir a vida mais claramente! Esta escrevendo muito bem e a cada dia trazendo mais inspiração!
    Obrigada
    beijos
    g