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Aldo Pereira e o Tibet

O artigo desse senhor na Folha Online é de tamanha estreiteza que me pareceu merecer ter seu nome colocado no próprio título dessa entrada. Notem, não sou contrário a artigos bem escritos que até defendam a China, mas por favor, usem de argumentos pelo menos utilizáveis para uma discussão séria. Seu artigo chamado “Brumas do Tibete” começa com a chamada “Quem apóia a campanha do dalai-lama deveria, primeiro, perguntar se eventual restauração instituiria direitos humanos no Tibete“.

Todo o argumento do articulista se baseia em olhar para o passado e julgar se, baseados nele, deveríamos ou não apoiar a campanha do Dalai Lama. O Sr. Pereira começa dizendo que “O povo tibetano acredita descender de um macaco criado por Avalokitesvara… A nação tibetana reverencia Tenzin Gyatso, 72, como “emanação” (manifestação corpórea) desse macaco primordial“, e que dali viria a legitimação de seu título de “Dalai Lama”.

Vamos começar tendo claro qual é a campanha do Dalai Lama a que Aldo Pereira se refere. Em sua nota à imprensa o Dalai Lama pediu:

1. moderação ao lidar com protestos (o contrário disso é a violência da polícia/exército contra manifestantes).
2. que a comunidade mundial se atente ao genocídio cultural que se opera no Tibet pelo governo chinês. Deixe-me explicar ao sr. Aldo o que é genocídio cultural. É a supressão e erradicação progressiva ou imediata de todos os traços de uma cultural autóctone.
3. que se evite destruir mosteiros buddhistas (ir contra a campanha do Dalai Lama equivale a apoiar a destruição de templos das religiões – ou o Sr. Aldo quer dizer apenas o Buddhismo?)
4. que se denuncie o assassinato regular, há décadas, de monges e monjas, incluindo a tortura.
5. autonomia política (e não independência como muitos enganosamente afirmam). Autonomia, porém, para Aldo Pereira significa “restauração dos privilégios”. Se ele tivesse pelo menos se ocupado em ler o que o Dalai Lama quer dizer por ‘autonomia’, não diria uma coisa dessas.

Voltemos ao primeiro argumento de Aldo Pereira. Este se resume em dizer que baseados nas mitologias e lendas dos povos – se elas forem absurdas para nós – então tais povos não deverão ser permitidos os cinco pontos da “campanha do Dalai Lama”, como ele chama essas reivindicações. Pois bem vamos tirar as consequencias do pensamento de Aldo Pereira. Comecemos com os ocidentais modernos que influenciados pelo Darwinismo do século 19 acham que o homem efetivamente descende de um macaco ou de um ser ‘inferior’ semelhante. Para Aldo Pereira, tais ocidentais modernos, se abrirem a boca contra uma opressão, podem, sem problemas, ser atacados por cacetetes da polícia.

Mas talvez não seja com os macacos que Aldo Pereira tenha dificuldades. Talvez seja o passado mítico e cheio de lendas que o incomode. Não se espera, é claro, que um articulista da Folha conheça simbolismo, estudos mitológicos ou pensamento simbólico (o que evitaria que ele escrevesse tal artigo), mas se se ter no passado de uma nação elementos mitológicos em sua criação (e confesso, aliás, que nunca tinha lido antes que os tibetanos acreditassem em origens de macacos – qual seria a fonte do Sr. Aldo para isso?) então, obviamente, Aldo Pereira deve apoiar completamente a exterminação de todas as nações indígenas dos quatro cantos do globo. É claro que Aldo Pereira, não sendo cristão, também não tem a obrigação de saber que todos os domingos os cristãos se regalam num café da manhã antropofágico onde acreditam que seu criador descende dos céus e divide seu corpo e seu sangue com os pobres mortais. Claro que, sendo da Folha, ele poderia estar mais bem informado que cristãos, muçulmanos e judeus acreditam em Adão e Eva, serpente, paraíso, arca de noé, etc, seja literal, seja simbolicamente. Mas, tudo bem, ele não sabe. Seguindo seu argumento, quem subscrever a qualquer religião ou acreditar em evolução vinda de macacos, pode ter seu povo destruído, violentado e seus templos destruídos. Me pergunto quem sobra nisso tudo, além do próprio autor. Em resumo, a liberdade de um povo, seus direitos humanos e de expressão devem estar condicionados, segundo o articulista, àquilo que acreditam (no presente ou no passado).

O segundo motivo porque Aldo Pereira não gostaria de que apoiássemos a “campanha do Dalai Lama” é porque no seu passado político o Tibet se apresentou por vezes como dominador e antiquado. Exemplos de frases de Aldo Pereira:

  1. No século 8, o Tibete anexou ou avassalou várias nações da Ásia Central, inclusive a China, que teve a capital saqueada em 763.
  2. Na teocracia deposta, sacerdotes e nobres possuíam todas as terras e demais meios de produção. Camponeses, nômades, pequenos comerciantes e mendigos formavam minoria relativamente livre da plebe.
  3. Deficiências de higiene e nutrição matavam quase metade dos bebês no primeiro ano de vida.

Baseados nesses tipos de argumentos, não deveríamos, se formos seguir o raciocínio do articulista, apoiar a luta por direitos humanos em nenhum lugar! Direitos indígenas? Bah? Eles guerreavam constantementes uns com os outros, além das mitologias esquisitas. Direitos para brasileiros? Bah! Depois das atrocidades na guerra do Paraguai todos os brasileiros deveriam ter permanecidos sob proteção portuguesa. Direitos para norte-americanos? Bah! Depois do que fizeram aos nativos americanos, iraquianos, panamenhos, etc, que eles continuassem vassalos do Império Britânico. Ora, por favor, justificar a dominação, o genocídio cultural e a tortura com base no passado (recente ou ancestral) de um povo é de uma tacanhez a toda prova. Que povo não cometeu atrocidades no seu passado? Cite um só, ó articulista. E por isso tal povo e seus simpatizantes não deveriam alçar suas vozes em protesto? Os judeus não deveriam ter sido resgatados dos campos nazistas porque em seu passado acreditavam que Moisés subiu numa montanha e conversou com o criador de todo o universo?

O Sr. Aldo Pereira termina o artigo dizendo: “Quem apóia a campanha do dalai-lama deveria, primeiro, perguntar se eventual restauração instituiria direitos humanos no Tibete. Segundo, perceber que a estratégia de incitar tibetanos à revolta meramente agrava sua opressão, porque o governo chinês não cederá: é imune a sanções diplomáticas ou econômicas e sabe que o interesse comercial do mundo na China torna quixotesca a proposta de boicote da Olimpíada. Outras minorias étnicas da China, além da tibetana, concorrem à liberdade na arena política desta Olimpíada. Mas nenhuma delas será livre enquanto a própria China não for“.

Primeiro, Aldo Pereira questiona se devemos apoiar o que ele chama de ‘campanha do Dalai Lama’, usando argumentos espúrios dos quais nenhum povo está livre. Depois, não tendo feito a lição de casa que articulistas de jornais tão frequentemente esquecem de fazer, ele assume que a ‘campanha do Dalai Lama’ “incita tibetanos à revolta“, apesar de o Dalai Lama repetir ad nauseum que ele quer o diálogo e pedir que não haja revoltas e violências. Em terceiro lugar, Aldo Pereira ridiculariza a luta pelos direitos humanos quando diante de um inimigo do poderio da China. Ora, Sr. Aldo, luta-se pelos direitos humanos, assina-se listas de protestos e abre-se a boca contra a opressão não porque se acredita que com isso vitórias serão alcançadas. Faz-se isso porque é o que humanos devem fazer, mesmo em causas aparentemente sem esperança. É isso que nos torna humanos conscientes: indignar-se diante da injustiça ao invés de abaixar a cabeça e calar-se quando o opressor parece forte demais. Foi assim com os franceses na ocupação nazista, foi assim com os indianos sob o colonialismo britânico, e será assim enquanto alguns homens continuarem sabendo que a ação deve ser feita porque é justa, e não porque dará resultados. Na última frase, Aldo Pereira tem razão, “nenhuma das (minorias) será livre enquanto a própria China não for“. Então, por favor, proponha sugestões úteis para libertar a China do jugo da opressão – que restringe seu povo e oprime os demais -, ao invés de enfraquecer a luta de um povo por liberdade baseado em suas mitologias e passados políticos.

dhanapala

Este é o blog pessoal de Ricardo Sasaki, psicoterapeuta, palestrante e professor autorizado na tradição buddhista theravada (Upasaka Dhanapala) e mahayana (Ryuyo Sensei), tradutor, autor e editor de vários livros, com um grande interesse na promoção e desenvolvimento de meios hábeis que colaborem na diminuição real do sofrimento dos seres, principalmente aqueles inspirados nos ensinamentos do Buddha. Dirige o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda e escreve no blog Folhas no Caminho. É também um dos professores do Numi - Núcleo de Mindfulness para o qual escreve regularmente. Para perguntas sobre o buddhismo, estudos em grupo e sugestões para esta coluna, pode ser contactado aqui: biolinky.co/ricardosasaki

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10 Resultados

  1. Anonymous disse:

    Deve ser uma mesg automática pq o Magalhães não é mais o Ouvidor da FdeS.

  2. Dhanapala disse:

    Aqui, a resposta (esperada) do envio dos artigos para o ombudsman da Folha:

    Caro Senhor,

    agradecemos sua manifestação, levada ao conhecimento dos colunistas.

    Atenciosamente,

    Mário Magalhães
    Ombudsman – Folha de S.Paulo

  3. Dhanapala disse:

    Olá amigos, como disse anteriormente, não sou assinante da uol ou folha, não tenho acesso à página e não tenho como responder, caso eles escrevam algo em retorno. Sintam-se à vontade para enviar o texto para quem quiserem.

  4. Anonymous disse:

    O artigo do Aldo Pereira é mesmo ruim.

    Mas, Fernando, porque chamá-lo de “esquerdopata”?
    Ao final ele critica a China e defende os direitos humanos.
    Ele não demonstrou nenhum esquerdismo, apenas uma tremenda ignorância sobre a situação tibetana e as propostas do Dalai Lama.

    Pensando em nossa prática budista, “esquerdopata” é um insulto cunhado pelo Reinaldo de Azevedo (um dos mais desvairados e raivosos jornalistas brasileiros), assim, como este insulto se coaduna com o desejo de “Metta” ao final de sua mensagem?

    A ignorância (avijja) de Aldo Pereira é grande, tenhamos compaixão dele … e de todos os leitores do “tio-rei” que se deixam levar pelo seu (dele) descontrole.

    Beto

  5. zamprogno disse:

    pois é. como disse o monge Genhsô, uma resposta tão boa, para, como vc disse, um artigo de uma inteligência tão medíocre…
    isso saindo de um “articulista” conhecido não sei se dá medo, indignação, pena…
    como respondi ao amigo que originalmente me encaminhou o artigo, nem é tanto por uma identificação com a causa tibetana, mas pela ofensa à nossa inteligência mesmo, com argumentos preconceituosos e ultrapassados.

  6. Anonymous disse:

    Ricardo,

    Os e-mails que você pode enviar seu texto, são esses abaixo:

    [email protected]

    [email protected]

    Fernando

  7. Dhanapala disse:

    Olá amigos. Não tenho acesso ao link original da matéria, pois não assino a UOL (já tive problemas o suficiente com seu péssimo serviço ao consumidor) e portanto não sei como poderia enviar para a Folha. Se qualquer um tiver esse acesso, sinta-se livre para mandar para sua redação.

  8. Anonymous disse:

    brilhante ( 2)

    precisão cirurgica,linguagem clara e acessivel, contra-argumentação fundamentada, (e olhe que sem muito esforço…rs).

    É este modelo de diálogo que precisamos e penso que se mostra mais produtivo ao budismo brasileiro. (se é que se pode dizer de um budismo brasileiro).

    ana

  9. Anonymous disse:

    Mais um esquerdopata se posicionando sobre a questão tibetana.

    Na mão dessa gente milhões já morreram em nome de um ideal “nobre” de sociedade.

    Nós bem sabemos o que essa gente é capaz quando chega ao poder…

    Ricardo, acho que você deve enviar esse seu artigo para a Folha.

    Metta,

    Fernando

  10. Monge Genshô disse:

    Simplesmente brilhante como resposta Prof Sasaki!
    A estreiteza de pensamento e a falsa cultura do articulista são nauseantes, e nos fazem temer por um país que além de ser um asilo de idéias em que sobrevivem apoios a conceitos mortos em todo o mundo civilizado, ainda tem pessoas dedicadas a distorcer idéias e fatos e ampliar as brumas da ignorância, como o caso de Aldo Pereira.