• Sem categoria

Boas Intenções e Meu Eu

Alguém que participou do retiro lá em Portugal, me enviou um email interessante baseado em uma das aulas sobre kamma (karma) que lá ocorreu. Sua pergunta era mais ou menos assim: que a concepção de que as boas intenções têm boas consequências e as más têm negativas, contraria, ou pode contrariar, a ideia de que tudo é consequência de um encontro de muitas coisas num determinado contexto. Como então resolver isso?

A questão é muito interessante, pois vai direto ao ponto da credibilidade da lei do kamma (karma). A dúvida surge porque muito frequentemente unimos duas coisas que são meio que separadas. Uma coisa é o fruto do kamma, outra coisa é o resultado, no mundo, de nossas ações. Explico. O resultado físico de nossas ações (e suas repercussões) é dependente sim de múltiplos fatores, e não apenas fatores dependentes da ação intencional do indivíduo. Minhas ações intencionais nesse momento não influenciam diretamente, por exemplo, o clima lá fora. Mas certamente o clima lá fora pode servir de influência ou base, entre tantas outras, para minhas ações intencionais. Isso entretanto é bem diferente do que no Buddhismo é conhecido em termos técnicos como fruto do kamma. Aqui, efetivamente ‘boas intenções têm boas consequências e as más têm negativas‘, no sentido de fruto do kamma, e que se refere estritamente ao bem-estar e sofrimento sentido pelo sujeito da ação quando de sua execução e nos tempos subsequentes. As ações intencionais (kamma) podem ou não acabar por produzir consequências exteriores também, mas como parte de uma rede maior.

E é claro que a questão das “boas intenções e más intenções” não pode ser tratada de forma simplista. Como no caso do homem que lava seu carro despediçando água e do rapaz que estaciona seu carro a altas horas da noite com seu som ligado no máximo, que mencionei noutra ocasião, aparentemente ambos parecem ter boas intenções. Um quer efetivamente ter seu carro bem limpo e reluzente. O outro quer curtir sua música na companhia dos amigos. O que há de mal nisso? Intenção não é entretanto algo tão simplista quanto só querer ser feliz ou querer ativamente o mal de alguém. Aqui entra o fato de que a intenção sempre vem junto de outros fatores, e portanto a atenção, o cuidado e a consciência do contexto geral também contam nessa intenção. Elas in-formam as boas e más intenções. Atos de inconsciência, desatenção, descuido, descaso, imprudência, ainda que feitos com a “melhor das boas intenções”, raramente poderiam ser chamados de kusala kamma, ação intencional salutar. Isso acaba por repercutir em todos os nódulos que formam a rede.

Um pensamento de Tan Ajahn Buddhadasa pode ajudar aqui:

Pensamento livre correto:

É para a causa da felicidade de todos,

Não apenas para a felicidade de “MIM”.

Assim, sejam cuidadosos com o pensar – falar – agir

que segue de acordo com os próprios sentimentos,

Isso [esse cuidado] é o típico modo thailandês de se comportar.

dhanapala

Este é o blog pessoal de Ricardo Sasaki, psicoterapeuta, palestrante e professor autorizado na tradição buddhista theravada (Upasaka Dhanapala) e mahayana (Ryuyo Sensei), tradutor, autor e editor de vários livros, com um grande interesse na promoção e desenvolvimento de meios hábeis que colaborem na diminuição real do sofrimento dos seres, principalmente aqueles inspirados nos ensinamentos do Buddha. Dirige o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda e escreve no blog Folhas no Caminho. É também um dos professores do Numi - Núcleo de Mindfulness para o qual escreve regularmente. Para perguntas sobre o buddhismo, estudos em grupo e sugestões para esta coluna, pode ser contactado aqui: biolinky.co/ricardosasaki

Você pode gostar...