Um dos projetos em que estou engajado no momento é a preparação do novo número da Revista Sati. O número 2 é muito interessante e tem como subtítulo “As Contribuições das Mulheres para o Buddhismo”.
A editora americana logo de início abre com a pergunta intrigante: “Até recentemente, quem perguntasse sobre a história do Buddhismo logo perceberia como era difícil encontrar informações sobre a vida e as contribuições das mulheres buddhistas. As poucas exceções provavam a regra. Apesar de algumas escolas do Buddhismo celebrarem deusas do sexo feminino, o “divino feminino”, e as consortes de professores do sexo masculino, as mulheres comuns têm sido geralmente negligenciadas. O que mais, além das exigências da vida diária, poderia ter ofuscado as contribuições das mulheres para o Buddhismo?”
A Revista é composta de seis longos artigos, realçando o papel de algumas mulheres especiais, bem como interessantes e inéditas perspectivas sobre o feminino no Buddhismo antigo e no contemporâneo. Para a editora americana o tema é tratado segundo “a lente de três temas que se sobrepõem: estudiosos buddhistas antigos, representações simbólicas de gênero e líderes contemporâneas inspiradoras”.
Deixo aqui alguns trechos do primeiro artigo, o desafiador “Como Apegar-se ao Gênero Subverte a Iluminação” de Rita Gross, uma acadêmica muldialmente famosa que tive oportunidade de encontrar uns anos atrás.
Alguns dos temas tratados no artigo são tratados também neste vídeo para quem entende bem inglês:
A maioria das formas de buddhismo adere aos ensinamentos da ausência do ego, afirmando que não existe um eu permanente e duradouro sob o fluxo da experiência, apesar de nossa profundamente enraizada reação emocional de que deve haver tal coisa porque isso parece tão real. Os ensinamentos buddhistas afirmam também que grande parte de nosso sofrimento é causada por nosso apego a tal ideia bastante enganosa de um eu que não existe. Iluminação, paz, libertação – quaisquer palavras que se utiliza para transmitir o ponto de vista e prática buddhista – requer que alguém abandone o fardo de constantemente tentar constituir um eu, uma duradoura e confiável identidade fora do caleidoscópio de nossa experiência. Assim, parece que o Buddha nos leva a tomar este assunto da ausência do ego com a máxima seriedade.
Durante anos eu usei um slogan para resumir a situação: Embora não haja um eu permanente e duradouro, ainda assim, o gênero (masculino/feminino) é real. Colocando ainda mais sucintamente, ausência de ego possui gênero – uma declaração que não faz sentido, mas uma declaração que capta a irracionalidade de se apegar a normas rígidas e fixas de gênero, ao mesmo tempo em que se afirma a ausência de ego. Parece-me que apenas um elemento desse slogan pode realmente permanecer porque seus dois elementos são mutuamente exclusivos. Qual é mais importante para nós? Ausência de ego e iluminação ou a segurança de noções convencionais sobre gênero?
A tragédia é que os buddhistas têm gasto uma grande quantidade de tempo e energia desconstruindo o ego com muitos ensinamentos sofisticados. Alguém poderia pensar que trabalhando tão duro para desconstruir o ego, os buddhistas teriam notado como o gênero é um componente tão fundamental do ego. Em vez disso, eles gastaram uma quantidade equivalente de tempo e energia fazendo e implementando regras sobre gênero, especialmente para os monges, e também concordaram, sem qualquer comentário, com as normas de gênero das culturas vizinhas.
Algumas partes da minha análise de como o apego ao gênero subverte a iluminação realmente têm sido reconhecidas pelos buddhistas. A fácil má interpretação do ensino tradicional de que o renascimento no sexo feminino é menos afortunado do que o renascimento masculino é precisamente sobre a dor de ser mulher em um sistema dominado por homens, um ponto que é claramente reconhecido nas listas tradicionais dos problemas do renascimento feminino.
A eficácia de tal análise desconstrutiva {aqui a meditação sobre agregados é analisada] pode ser demonstrada pela reação de um jovem após um dia de meu ensino sobre Buddhismo e gênero. Ele disse: “Sem o meu bigode e genitais, eu não teria nenhuma ideia de quem eu sou”. Eu queria gritar: “Bingo – você entendeu!” Certamente, ir para aquele lugar onde não se sabe quem é, é seguir muito adiante no caminho de alcançar a paz da ausência de ego e a liberdade em relação à prisão dos papéis de gênero”.
Muito importante essa reflexão! Ela coloca em questão a manutenção dos privilégios de ser homem em sistemas sociais androcêntricos. Sabemos que esse modelo é construído a partir de estrutura opressiva, hierárquica e imoral. Sendo assim, insustentável sob o ponto de vista ético e espiritual.
Aqueles que que insistem em considerar, defender e ensinar que é parte da “natureza” da mulher alguma dimensão de inferioridade ou, ainda, que é um “karma ruim nascer mulher”, atribuindo aos homens uma condição de merecimento e elevação, não só não estão dispostos a questionar privilégios políticos (atribuindo aos mesmos um status espiritual), mas sobretudo são coniventes com os sistemas de opressão que operam no ceio da humanidade. Por que? Porque a falta de qualquer questionamento moral e político mais básico sobre esse estado de coisas faz com que não enxergue e que tais sistemas levam ao sofrimento e a covardia, jogando as pessoas umas contra as outras e dando a ilusão de que de órgãos genitais e maneiras “masculinas ou femininas” (culturalmente construídas) de pensar, julgar e agir, podem ser fontes a partir das quais emanariam alguma superioridade ou inferioridade, respectivamente. Numa palavra é uma identificação conveniente com sistemas de privilégios que em nada lembra qualquer atitude de “amor-bondade” ou mesmo de equidade ou igual atribuição do estado de buda nas pessoas. Pensar e defender o nascimento de um ser humano como mulher como representando um “karma de inferioridade” não somente não pode ser atribuído a qualquer suposta lista de “consequências kármicas” (da maneira que muitas vezes é colocada), como também deveria estar entre as situações de opressão que levam ao sofrimento, as quais o budismo pretende superar com ações concretas no dia-a-dia. Nesse sentido deveria ser compreendido com um karma coletivo que nos engaja e compromete a todos enquanto seres humanos.
Não podemos considerar que “pensar correto”, “agir correto” – ou nenhuma das demais seis condutas (meios) para se atingir a iluminação -, seja maculada com qualquer resquício de androcentrismo ou qualquer outra forma de opressão. Não acredito que haja quem sustente, teórica ou empiricamente, que o Caminho Óctuplo expresso na Quarta Nobre Verdade possa ser percorrido com a manutenção de pensamentos, julgamentos, falas e/ou atitudes opressivas. O androcentrismo é muito presente, deforma datada ou não, em várias religiões e essa presença, se mantida, representa uma das formas mais virulentas de opressão, injustiça e produção de sofrimentos. Só não tem conhecimento disso quem jamais foi informado (a) sobre absolutamente nada na história da humanidade ou aqueles que vêm o mundo sob a ótica do órgão genital emanador de superioridades.
Mais além, se lembrarmos que o Dhamma Venaya (budismo) é uma filosofia que propõe a libertação e a iluminação do sofrimento e da ilusão de absoluta identificação material, chegaremos a óbvia conclusão de que a distinção entre homens e mulheres, mantendo uma falsa e imoral hierarquia, não só não faz sentido como também é paradoxal.
Felicidade a todxs!
P.S. Por essas e outras razões, deixo os parabéns e minha mais sincera e plena gratidão pela reflexão expressa no texto acima. Felizmente esse questionamento chega ao budismo, pois já há muito que é presente em outras religiões.
Estamos na fase de revisão, não deve demorar muito! O número 2 está excelente.
A julgar por este aperitivo a próxima publicação vai manter o elevado nível.
Demora muito?
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