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É essencial frequentar um centro e ter um professor?

Buddha e o por do sol

Tem surgido no Buddhismo brasileiro uma tendência de alguns de seus representantes e participantes pensarem que é essencial alguém frequentar um centro buddhista para se considerarem buddhistas, ponto que frequentemente é estendido para o postular que é essencial que se tenha um professor e se siga uma determinada escola/centro.

Vejamos cada uma dessas duas proposições.

1. É essencial alguém frequentar um centro buddhista?

Antigamente, a função de um mosteiro buddhista (que é a instituição original criada pelo Buddha) era de prover duas coisas: 1. oferecer um espaço ideal em que homens e mulheres pudessem se dedicar completamente à prática e realização dos ensinamentos; 2. preservar os ensinamentos do Buddha para as próximas gerações.

O primeiro item se mantém no caso dos mosteiros, porém, aqui no Brasil, onde não há mosteiros em que monges vivem e dedicam o resto de suas vidas à realização do nirvana, essa função não se aplica. Centros e templos buddhistas são lugares em que o praticante vai ocasionalmente, para escutar palestras, meditar ou participar de alguma cerimônia. Isso é feito, no melhor dos casos, uma vez por semana e para ocasionais retiros e cursos. Mesmo os oficiantes (frequentemente chamados, de modo errôneo, de “monges”) não vivem em tais lugares nem têm o estilo de vida e os propósitos imediatos dos monges de antigamente.

Em relação ao segundo item, a função do mosteiro na história buddhista foi de preservar os ensinamentos que tal e qual comunidade monástica considerava como sendo originada do Buddha. Isso era feito, no começo, por meio da repetição oral, até que os monges fossem capazes de se lembrar de memória dos ensinamentos, algo fundamental devido a ausência da escrita no âmbito dos ensinamentos espirituais. Com o advento da escrita e da expansão da prática de guardar os ensinamentos em manuscritos, ainda assim, o mosteiro era importantíssimo como centro que congregava os copistas e guardava as poucas cópias que podiam ser preservadas por esse método. Com a possibilidade, porém, de produção em massa, e agora ilimitada e fácil, de material impresso, mosteiros e centros não se ocupam mais em treinar monges memorizadores, nem preservar as únicas e poucas cópias desse ou daquele ensinamento.

O mosteiro serve, assim, para o treinamento de pessoas que queiram se dedicar ao modo de vida monástico preconizado pelo Buddha. Centros e templos, por outro lado, servem de locais de ensinamentos, inspiração, esclarecimento, coisas importantíssimas, mas que não podem ser consideradas condições indispensáveis na vida espiritual de alguém bem intencionado. Tal pessoa ainda terá que encontrar em si mesmo o tempo, a dedicação e o esforço em discernir o joio do trigo nos ensinamentos. Apenas frequentar um centro buddhista não é garantia de esclarecimento, nem isso deveria ser usado para discriminar e separar devotos sinceros.

2. É essencial alguém ter um professor?

Essa é uma pergunta que precisa ser qualificada. O que se quer dizer com ter um professor? Significa se submeter a alguém, praticando estrita e obedientemente o que ele/ela ensinam? Significa visitar ocasionamente para receber ensinamentos? É possível ter vários professores? Devem ser da mesma escola ou podem ser de escolas diferentes?

Fato é que no Buddhismo brasileiro há aqueles que propõem que é condição sine qua non ter um professor, entendendo com isso que haja exclusividade e dedicação a apenas uma instituição. Isso se vê principamente no Buddhismo de origem japonesa, mais particularmente no Zen, que devido à existência das “linhagens de professores” criadas em seu meio, fazem com que a prática do zen seja algo impossível de ser feita fora do centro de um professor. Sem esse atrelamento a uma instituição específica não há “progresso” na carreira do postulante, pois somente o mestre que você escolheu é capaz de elevá-lo na hierarquia da instituição e fazê-lo sentir um praticante “de verdade”. A imaginada cadeia de professores que passam ‘de coração para coração’ a transmissão a um discípulo, faz com que um praticante pense que qualquer progresso se dá nesta submissão à linhagem e à instituição.

Note-se que isso representa um desenvolvimento das relações existentes no Buddhismo antigo, iniciadas pelo próprio Buddha. No Buddhismo dos primeiros séculos a transmissão e a linhagem é dos votos monásticos, não de ensinamentos. Apenas muitos séculos mais tarde, na China, é que se criou a história de linhagens de transmissão, supostamente remontando até o Buddha, como forma de conferir fidedignidade aos ensinamentos transmitidos diante das várias acusações de que os ensinamentos não eram os mesmos que aqueles dados pelo Buddha. Com a aceitação das “linhagens de patriarcas e de transmissão” o praticante passa a ter a impressão de que aquilo que está aprendendo é exatamente aquilo que o próprio Buddha ensinou, afinal ele tem um papel diante de si mostrando que seu professor, e o professor dele, receberam a “transmissão” do exato ensinamento que o Buddha ensinou para Mahakashyapa, Ananda, etc. O desconhecimento da história buddhista não permite que vejam que não foi assim como o Buddha ensinou e transmitiu os ensinamentos e que “linhagens de transmissão” são tão somente meios hábeis de inspiração e não fatos reais.

A tendência de ver a participação e mesmo progresso no Buddhismo como atrelado necessariamente a ter professores e participar formalmente de instituições afeta o desenvolvimento de todos. Os que se ligam a um centro passam a pensar que estão numa situação privilegiada e que somente estar lá garante que estão no caminho certo; professores envolvidos com essa ideia passam a imaginar que realmente representam linhagens e ensinamentos que vêm desde o Buddha e que eles mesmos são essenciais para o grupo de fieis; e aqueles que se interessam pelo Buddhismo mas que por algum motivo não se ligaram a um professor ou a um centro, se sentem ora cidadãos buddhistas de segunda categoria, ora rebeldes independentes que descobrirão por si mesmos o caminho verdadeiro, assim como o Buddha o fez.

Nisso tudo, a função essencial dos centros, templos e professores se perde, de guias e amigos mais experientes que poderiam ser, eles se transformam em guardiões de portais esotéricos, locais essenciais em que o neófito e ignorante deve necessariamente frequentar para receber a joia da trasmissão que lá se esconde.

dhanapala

Este é o blog pessoal de Ricardo Sasaki, psicoterapeuta, palestrante e professor autorizado na tradição buddhista theravada (Upasaka Dhanapala) e mahayana (Ryuyo Sensei), tradutor, autor e editor de vários livros, com um grande interesse na promoção e desenvolvimento de meios hábeis que colaborem na diminuição real do sofrimento dos seres, principalmente aqueles inspirados nos ensinamentos do Buddha. Dirige o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda e escreve no blog Folhas no Caminho. É também um dos professores do Numi - Núcleo de Mindfulness para o qual escreve regularmente. Para perguntas sobre o buddhismo, estudos em grupo e sugestões para esta coluna, pode ser contactado aqui: biolinky.co/ricardosasaki

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5 Resultados

  1. João Santos disse:

    Texto muito bom! Esses mesmos questionamentos eu tenho feito depois que passei por algumas sanghas de escolas japonesas e fiz comentários semelhantes em alguns blogs de discussão budista. Realmente o valor que é dado a escola ou instituição sobrepõe o que seria a verdadeira intenção de uma comunidade que é ensinar o Darma. Outro ponto que também questiono é o excesso de “folclorismo” que algumas sanghas apregoam do tipo: “usar tal quadro ou amuleto vai atrair boa sorte porque no Japão é assim” ou ” Fazer tal rito vai te purificar e lhe proteger de possíveis mazelas e isso é muito utilizado no Tibet”. Entendo que toda tradição religiosa é também um polo cultural e que assim como o cristianismo, o budismo se adequou e desenvolveu crenças populares, mas acredito (eu posso estar errado) que isso pode contribuir para aquele velho jargão que o budismo é uma tradição religiosa etnocêntrica. Já fui chamado de “buscador de religiões que atendam meus caprichos”, mas pergunto será mesmo que um país, instituição/escola possuem total propriedade sobre o ensino do Darma? Saudações e mais uma vez parabéns pelo texto.

  2. Thiago Albuquerque disse:

    Creio que muito desse pensamento no meio budista é advindo da tradição católica, com ênfase em paróquias e missas dominicais. O católico praticante seria aquele que vai a igreja semanalmente ao domingo e faz parte de uma paróquia administrativa. Tal pensamento é levado para a prática budista para caracterizar um budista praticante e engajado, mas tal cultura virtualmente não existe na ásia, não só entre o budismo mas como em outras religiões de matriz indiana. A prática é pessoal, não comunitária! Você vai ao templo quando deseja, ou até todo dia! Ou vai em festivais ou em peregrinação. O professor não é necessariamente o monge local, mas aquele que você escolheu por várias razões, e só é procurado por quem deseja se engajar em meditação e práticas avançadas! E tal bagagem cultural se intensifica com o discurso das tradições tibetanas e zen sobre o guru ou professor. Já tive casos em que pessoas contestaram meu voto de refúgio por não ter um nome de refúgio atrelado a uma cerimônia, pois recebi refúgio primariamente na tradição theravada onde isso não é tradicional. O texto elucida e esclarece muito bem. Obrigado Ricardo! Sadhu!

  3. Jorge disse:

    Texto fantástico, sou praticante de budismo, associado a uma escola/organização japonesa e realmente as influências culturais, tanto de origens nipônicas quanto chinesas, acabam sobrepondo a essência budista, gerando excessos de julgamentos e com uma série de regras e hierarquias. Não deixarei de participar, apenas sigo o Darma, busco conhecimento em diversas escolas sem julgamentos, contemplando apenas o que é bom, para mim e para todos os seres…