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Nossas serras elétricas

Boa parte dos problemas do mundo vem de cada qual pensar sempre em si, nos SEUS sentimentos, como citados por Ajahn Buddhadasa, e imaginar que todos devem pensar e sentir exatamente como sentem e vêem as coisas. Quando encaramos todas as coisas sobre o prisma de nossos sentimentos “pessoais”, o MIM vem muito na frente do NÓS. “O inferno são os outros“, já dizia Jean-Paul Sartre. Quando somos contrariados, quando nos é dito que algo que pensamos apresenta problemas, ou algo que sentimos pode não ser o melhor, revoltamo-nos! E isso porque nos identificamos de tal maneira com aquilo que pensamos e sentimos que nos é impossível deslocarmos nossa visão o suficiente para ter uma outra perspectiva. O que sentimos e pensamos passa a ser o parâmetro de julgamento das coisas. E ai daquele que o contrariar!
Certa vez tive a experiência de ver uma pessoa, que lá pela meia-noite resolveu que seria uma boa hora de consertar seu portão, com serra elétrica e martelo! Por mais de uma hora a agonia se manteve, acordando obviamente toda a vizinhança. Primeira tentativa de explicar para ele o inapropriado da ação? Gritos e xingamentos. E essa é a manifestação suave. Pior quando a reação é por trás, nas costas.

Não é que a pessoa pare por um momento e reflita sobre os argumentos de porque sua ação é disruptiva da forma como a está fazendo. Uma vez que o comportamento seja contrariado, mesmo que por simplesmente não expressando o mesmo entuasiasmo, vem a raiva. Você está sentado com um colega e ele começa a te contar as maravilhas de viajar para Pedroso Moraes. A empolgação da cidade, as danças no coreto… Isso enquanto você está tentando estudar para as provas da próxima manhã! Ou poderia ser sobre as vantagens de possuir um novo modelo de um gadget tecnológico que absolutamente não te interessa. Mas experimente expressar qualquer coisa menos entusiasmada que uma alegria reluzente na face empolgada e logo seu colega já ficará contrariado por seu desinteresse. Afinal, não pulando de alegria e excitação, parece que você contraria aqueles sentimentos que ele toma como essenciais de seu eu, a própria expressão da verdade!

Dali para o passo seguinte de que um malestar efetivo surja nele não precisará muito e mesmo poderá começar a te caluniar como um sujeito desinteressado de tudo, contrário ao progresso, que detesta viagens e um verdadeiro inimigo do povo de Pedroso Moraes. Somos obrigados a nos empolgar com cada idéia das pessoas à nossa volta, interessar-nos com sublime atenção e mesmo participar ativamente de cada vontade e opinião pessoal dos outros sob pena de sermos chamados disso e daquilo. É o jugo dos sentimentos pessoais que foram elevados a “mestres” e como cada um tem os seus e eles são o parâmetro de todas as coisas…

Da próxima vez que seu vizinho resolver consertar o portão à meia-noite, saia de casa, acorde os vizinhos e, juntos, pulem de alegria, expressando solidariedade por ação tão espontânea! Quem sabe você até pegue sua serra elétrica e ajude também! Ou pode simplesmente perceber que mais uma vez alguém decidiu agir olhando pro umbigo. E prepare-se para ser acusado de inimigo dos portões e das serras elétricas!

dhanapala

Este é o blog pessoal de Ricardo Sasaki, psicoterapeuta, palestrante e professor autorizado na tradição buddhista theravada (Upasaka Dhanapala) e mahayana (Ryuyo Sensei), tradutor, autor e editor de vários livros, com um grande interesse na promoção e desenvolvimento de meios hábeis que colaborem na diminuição real do sofrimento dos seres, principalmente aqueles inspirados nos ensinamentos do Buddha. Dirige o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda e escreve no blog Folhas no Caminho. É também um dos professores do Numi - Núcleo de Mindfulness para o qual escreve regularmente. Para perguntas sobre o buddhismo, estudos em grupo e sugestões para esta coluna, pode ser contactado aqui: biolinky.co/ricardosasaki

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1 Resultado

  1. Luide disse:

    🙂

    Acredito que mesmo no estudo, não se pode dizer nada sobre as idéias do autor estudado, enquanto não fizermos de suas idéias as nossas, e não o contrário. A isso precede a desconfortável tarefa de nos colocarmos, por um momento, entre parêntesis — lugar que limita a “liberdade” do orgulho.

    Uma criança que caminha pelo Shopping pode reduzir “toda a realidade do lugar” a uma meia dúzia de lojas de doces e brinquedos — um recorte feito pela sua predileção. Assim, também, qualquer olhar adulto não-contemplativo reduz o mundo a um punhado de amigos queridos, doces e brinquedos (de gente grande).