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Quantos Buddhas são necessários?

Muitos Buddhas

Ainda que no cânone antigo haja a menção a seis Buddhas (Vipaśyin, Śikhin, Viśvabhu, Krakucchanda, Kanakamuni e Kāśyapa) anteriores a Sakyamuni, tais Buddhas são mencionados apenas como precedentes, vindos desde um passado distante e exemplificando que, de tempos em tempos, nascia no mundo um ser desperto que trazia ao mundo o ensinamento libertador. Ainda assim, tanto para os que viveram na mesma época em que o Buddha estava vivo, quanto para as gerações de discípulos que o sucederam, Siddharttha Gautama que havia abandonado sua vida de príncipe para descobrir a verdade e finalmente se tornar o Buddha, sempre foi o alvo único de admiração e orientação. Seus eram os ensinamentos a serem aprendidos, compreendidos e seguidos.

Num dos livros canônicos da escola Theravāda, considerado tardio e um dos últimos a ser incluído no cânone, esse número é alargado, mencionando 24 Buddhas anteriores a Sakyamuni. No cânone antigo também é mencionado um Buddha que surgirá no futuro, quando o ensinamento de Sakyamuni tiver sido completamente esquecido: o Buddha Maitreya surgirá então para novamente pregar o Dharma.

Por volta de cento e cinquenta anos após a morte de Sakyamuni, porém, começa a surgir uma crença de que haveria, não no passado, mas neste exato momento, diversos Buddhas espalhados por diferentes mundos e direções, cada qual atuando na propagação de ensinamentos libertadores. Não se sabe bem como, onde e porque essa visão particular surgiu. Uma hipótese é de que poderia ter sido uma reação à solidão de se encontrar vivendo numa época que, embora ainda sobre a influência do ensinamento de Sakyamuni, já as lembranças vívidas do grande mestre começavam a desaparecer. Um motivo associado a esse pode ter sido o aparecimento nessa mesma época da literatura devocional hindu, como o Bhagavat Gīta, e com um potencial de atrair muitos aderentes, forçando o meio buddhista a oferecer formas mais acessíveis de conexão com seus ideais religiosos a fim de competir com os movimentos não buddhistas. O surgimento de vários Buddhas que poderiam atender aos pedidos e cuidar das necessidades de quem necessitava teria sido, assim, uma resposta ao crescimento dos caminhos devocionais teístas da época e uma forma de prover um consolo diante do distanciamento do Mestre.

Outra razão possível tem relação com a crescente popularização dos Jātakas, estórias que foram coletadas e compostas nessa época para exemplificar os imensos esforços que Sakyamuni fez em vidas anteriores a fim de atingir o estado supremo de Buddha. Se algumas pessoas começassem a pensar que outros seres poderiam estar também cultivando um caminho para se tornarem Buddhas, ficaria a pergunta de para onde iriam ao se tornarem Buddhas. O problema existe porque, segundo o cânone antigo, somente um único Buddha pode existir no mundo de cada vez:

Então, certos devas exclamaram: ‘Ó, se apenas quatro Buddhas completamente despertos surgissem no mundo e ensinassem o Dhamma assim como o Bem-Aventurado! Isso seria para o benefício e felicidade de devas e homens!’ E alguns disseram: ‘Não importa que sejam quatro – três seriam suficientes!’, e outros disseram: ‘Não importa que sejam três – dois seriam suficientes!’. Diante disso, Sakka disse: ‘É impossível, senhores, não pode acontecer de dois Buddhas completamente despertos surgirem simultaneamente num único sistema-mundial’”.

Se apenas um Buddha pode existir no mundo de cada vez, então possíveis seres que se tornassem Buddhas teriam que fazê-lo em outros mundos. Essa seria uma possível razão para o surgimento da ideia de vários Buddhas se manifestando em várias ‘terras de Buddha’, tendo sido proposta por Asanga (390-470 d.C.), ainda que seja bastante questionável que uma doutrina de Bodhisattvas estivesse desenvolvida nessa época tão distante.

A noção de vários Buddhas pode ainda ter surgido como uma forma simbólica de indicar que as portas do Dharma continuavam abertas, personificando, assim, a possibilidade da iluminação na forma de múltiplos Buddhas, anônimos e vivendo por todas as direções, em inumeráveis sistemas-mundiais, mas, ainda assim, vivendo nessa mesma época.

Numa obra canônica preservada pela escola Theravāda produzida em meados do segundo século a.C., a crença de que existe um Buddha situado em cada direção é criticada com os seguintes argumentos: Se é verdade que há um Buddha em cada direção, qual o seu nome, qual sua família, clã, os nomes de seus pais, seus principais discípulos, como é seu manto e tigela, e por quais vilas, vilarejos, cidades e reinos ele anda? Séculos mais tarde, no comentário a essa obra, o grupo que desposava essa visão é identificado como sendo os Mahāsanghikas, porém essa não é uma crença que precisava estar restrita a um grupo buddhista específico, podendo ter sido adotada por algumas pessoas de forma independente. A maior importância dessa menção é indicar que por volta de meados do segundo século a.C. essa crença existia suficientemente forte para ser um objeto de crítica de uma das escolas majoritárias.

A crença gradualmente crescente de que Sakyamuni não foi o único Buddha existente no momento presente, mas que Buddhas existiam por todos os cantos, milhares e milhões deles em inumeráveis reinos, foi determinante para alguns desenvolvimentos da história do Buddhismo.

~ Dhanapala

dhanapala

Este é o blog pessoal de Ricardo Sasaki, psicoterapeuta, palestrante e professor autorizado na tradição buddhista theravada (Upasaka Dhanapala) e mahayana (Ryuyo Sensei), tradutor, autor e editor de vários livros, com um grande interesse na promoção e desenvolvimento de meios hábeis que colaborem na diminuição real do sofrimento dos seres, principalmente aqueles inspirados nos ensinamentos do Buddha. Dirige o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda e escreve no blog Folhas no Caminho. É também um dos professores do Numi - Núcleo de Mindfulness para o qual escreve regularmente. Para perguntas sobre o buddhismo, estudos em grupo e sugestões para esta coluna, pode ser contactado aqui: biolinky.co/ricardosasaki

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1 Resultado

  1. o não-eu amedronta, o nibbana aterroriza. aí, nem aquele que revelou o não-eu escapa do instinto mundano de criar e espalhar egos pelo vazio afora…