Pular para o conteúdo

O que nos falta…

Uma rua lamacenta onde se alinham talvez uma centena de pequenos comerciantes no burburinho das compras e vendas. Motos, bicicletas, monges e galinhas vem e vão. Nada parecido com que geralmente encontramos no ocidente porém. Esses pequenos comerciantes não tem lojas nem uma variedade de produtos para vender. Possuem um pano empoeirado colocado sobre a rua de terra, e aquilo que cada um tem para oferecer pode ser meia dúzia de peixes, um outro cinco cabeças de couve-flor, um outro um punhado que não chega a um quilo de vagem. Os compradores são igualmente pessoas muitos simples, a cidade em geral é subnutrida e enquanto centro de peregrinação atrai os inválidos, doentes e miseráveis em busca de alguma esmola. O emprego mais duro do mundo, uma pequena moeda em troca de centenas de ‘nãos’.

Uma tibetana tira de um saco algumas rodelas de pão para dar para as cabras e cabritos na praça. Ao lado das cabras, velhas senhoras sentadas no chão, esqueléticas, cujas saris coloridos já se desbotaram pela passagem dos anos (talvez os mesmos que vi a vinte anos atrás), cansados de serem a única vestimenta arrastada pelo solo poeirento. Cada uma tem uma cumbuca de metal para receber as esmolas esporádicas. Elas não recebem o pão. Somente as cabras. Por elas passa um menino, não mais que sete ou oito anos. Ele faz esforço para subir pelos degraus uma cadeira de rodas. Na cadeira, provavelmente sua irmãzinha, aproximadamente da mesma idade. Sem pernas.

Mais adiante, após uma mesa onde um toca-cd musicaliza o ambiente com mantras buddhistas, um velho pai acocora-se no chão e ao seu lado um garoto jaz numa toalha, imóvel, pernas completamente retorcidas. O que passa pelo coração de um pai ao ver que não há absolutamente nada que possa fazer pelo filho? Logo adiante uma mãe lamuria-se pedindo uma esmola e ao seu lado, seu filho pequeno. Também no chão. Cego.

Essas são imagens diárias da vida aqui, expressoes inequívocas do sofrimento universal, chamados que brandam compaixão e agitam o coração. Nosso andar aos poucos se curva, instintivamente envergonhado de ser bem nutrido, com uma altura nitidamente superior a média, sem problemas que sequer beiram aqueles da maioria que aqui vivem. No entanto, este é o normal aqui. Tão normal quanto os barbeiros que possuem um banco de plástico e uma navalha para atender seus clientes, os rikxás movidos a homens magros em suas bicicletas, tibetanos mil entoando seus mantras, as lojas de docinhos, o chá servido em taças de barro, crianças que sabem falar uma única frase em ingles para estes estranhos ocidentais que aqui vem parar: “Hello friend!”

26 séculos atrás o Buddha escolheu a vida de mendicante. Optou pelo modo de vida daqueles que foram esquecidos e colocados de lado pela sociedade. Como posse tinha um manto descolorido, talvez não muito diferente daqueles das velhas sentadas no chão ao lado das cabras, e, como elas, também carregava uma tigela de metal consigo. Escolheu comer pouco, pois talvez pouco era o que os mais pobres podiam doar e ele não queria privar os pobres de também eles poderem doar. Doar não é um favor que se faz, mas um privilégio que se tem a honra de poder exercer. Ele passou a vida andando a pé, não se sentava em tronos, e ao invés de mantras mágicos, de sua boca saía apenas o dharma, simples e direto, belo no início, no meio e no fim, que leva ao coração, independente do tempo, que convida a vir e ver. E quando encontrava com as pessoas seu olhar e modo sempre diziam, mesmo que silenciosamente: “Hello friend!” Quando seremos capazes de olhar diretamente nos olhos dos seres sofrentes, e ver o Buddha logo ali, diante de nós?

Marcações:

8 comentários em “O que nos falta…”

  1. Incrível India,
    ou incrível humanidade?

    Que belo texto! Como Fernado disse atrás,um dos melhores posts que Dhanapala já publicou.

    Fatima Lusa

  2. Muito tocante!
    Por coincidência estou lendo sobre a vida de Madre Tereza que disse: “Jesus se faz o faminto, o despido, o desabrigado, o doente, o preso, o que está só, o que ninguém quer, e afirma: “A Mim o fizestes”. Ele tem fome do nosso amor e essa é a fome dos nossos pobres”. E ainda disse:
    “O fruto do silêncio é a oração.
    O fruto da oração é a fé.
    O fruto da fé é o amor.
    O fruto do amor é o serviço.
    O fruto do serviço é a paz.”
    É doar é um presente.
    Obrigada
    Mirian

  3. Obrigada…Muito obrigada. É sempre bom ser lembrada pra se estender além do centro. A compaixão que nasceu em vc se estendeu pra todos nós.

    Josane

  4. O que é que a gente vai dizer?
    Obrigado por aí de tão longe nos situar …e se é que me faço entender..trazer de volta ao essencial.
    abraço, Fátima

  5. “Doar não é um favor que se faz, mas um privilégio que se tem a honra de poder exercer.”

    Perfeito… um dos melhores posts que você já publicou.

    Grande abraço Ricardo e obrigado

    Fernando

  6. Que bom, Monja dhamananda estava lá para encontra-lo, claro. Bonito esse post depois de circundar a arvore da iluminação. Pega uma vaga aí em Nalanda para agente rs

    abçs

Não é possível comentar.