Um caminho, aqui. |
“Viver é fazer uma viagem” – Três Visões
Numa outra visão consoladora, nestes momentos de tragédia coletiva, ouvimos coisas assim: “Essas ocorrências, chamadas catastróficas, que ocorrem em grupos de pessoas, em famílias inteiras, em toda uma cidade ou até em uma nação, não são determinismo de Deus, por ter infringido Suas Leis, o que tornaria assim, em fatalismo. Não. Na realidade são determinismos assumidos na espiritualidade, pelos próprios Espíritos, antes de reencarnar, com o propósito de resgatar velhos débitos e conquistar uma maior ascensão espiritual“. Esta conhecida visão espírita também é consoladora. Aqui não mais Deus está lá no final, de braços abertos para receber as almas daqueles que morreram tragicamente, mas são essas próprias almas, aqui chamados de ‘espíritos’, que escolheram morrer assim. Unidos por um mesmo karma passado, os espíritos se unem antes de se reencarnar e, “com o propósito de resgatar velhos débitos e conquistar uma maior ascensão espiritual“, escolhem o “resgate coletivo”. O karma passado, somos informados, “São ações praticadas no pretérito longínquo, muito graves, e por várias encarnações vamos adiando a expiação necessária e imprescindível para retirada dessa carga do Espírito, com o fim de galgar voos mais altos“. Não houve, então, tragédia. Nada foi acidental. O evento já estava planejado, arquitetado pelos próprios atores, que decidiram, num ato conjunto, realizar a “expiação necessária”. O acidente deve ser visto como oportuno, pois “chega o momento para muitos, por não haver mais condições de protelar tal decisão, e terão que colocar a termo a etapa final da redenção pretendida perante as Leis Divinas. Dessa complexidade de fatos é que geram as chamadas ‘mortes coletivas’“. O consolo é duplo, primeiro por que esses meninos e meninas (no corpo, mas velhos na alma) escolheram eles mesmos fazer o resgate nesta vida; e, segundo, porque isso os levou a “galgar voos mais altos”. Estamos tristes, mas consolados por saber que foi sua escolha morrer assim e que estão num lugar melhor.
Diante dessas duas visões consoladoras, o Buddhismo se coloca naquela posição desconfortável e por vezes antipática de não oferecer consolos imediatos. Um jovem chega até o Buddha, desesperado e cheio de angústia. Seu pai havia morrido e ele, como filho primogênito, precisava cuidar para que sua alma recebesse os ritos necessários. Ele havia ouvido que na região estava um homem muito sábio, um santo, um Buddha. Quem seria melhor que ele para se encarregar dos ritos de seu querido pai? “Venerável Senhor, por favor, me ajude a realizar os ritos para que a alma de meu pai se eleve e se junte ao reino dos deuses“. Buddha contempla a face constrita do jovem. O que poderia ele fazer? Como poderia transmitir algo que ia além do alívio da dor proveniente de um momento tão triste? O Buddha concorda: “Realizarei os ritos, mas você deverá me ajudar“. “Claro, Venerável Senhor! Farei tudo o que me pedir!“
O Buddha pede ao jovem dois potes de barro, cordas, manteiga e pedras. O jovem não entende, é um rito desconhecido para ele, mas segue em frente. “Coloque a manteiga num pote, as pedras no outro pote, e dependure ambos no galho daquela árvore que se debruça sobre o rio“. Obediente, o jovem realiza a tarefa. Ele está contente pois participa dos ritos que levarão seu pai ao mundo celestial. O Buddha diz: “Agora, com um pedaço de pau, quebre os dois potes!” O jovem realiza o rito da quebra dos potes e fica exultante, pois agora ele percebe o sentido de tudo aquilo. Ao cair, as pedras vão para o fundo e a manteiga fica boiando na superfície da água. “Ah! Que rito poderoso, as pedras representam as forças negativas que se afundam, e a manteiga é a alma de meu pai que se eleva, livre das amarras! Como é sábio este Buddha!” Mas o rito do Buddha ainda não havia terminado. “Agora, jovem, recite: ‘Pedras, subam à superfície! Manteiga, desça ao fundo!” Confuso, o jovem declara: “Mas, Venerável Senhor, isso é impossível! Qualquer um sabe que as pedras, por serem pesadas, necessariamente afundarão. E a manteiga certamente permanecerá na superfície da água!” “Ó, jovem“, respondeu o Buddha, “você parece saber tão bem sobre o que é possível e impossível. Eu declaro: as pedras e a manteiga são as ações prejudiciais e benéficas feitas pelas pessoas. Dependendo da qualidade das ações realizadas, das palavras ditas, dos pensamentos e emoções mantidos na mente, assim é o futuro. Como as pedras que afundam e a manteiga que se eleva, assim cada coisa segue sua natureza“.
A visão buddhista nos chama para olharmos nossas ações, fala e mente neste momento. Agora é o momento de zelarmos se depositamos pedras ou manteiga em nosso pote. Não é uma visão para alívio imediato. Não há resgates coletivos, escolhas por tragédias, nem apagamento do passado. Não há luzes nem anjos nos esperando, nem certezas de felicidade independente do que fazemos com nossas vidas. Mas há a certeza, inabalável, firme e profundamente tranquilizadora de que se nos dedicamos a untar nossos atos, linguagem e pensamentos com a manteiga da verdade e da compaixão, certamente quando o pote se quebrar, haverá apenas um destino certo.
Sr. autor do texto acima,
Peço ao Sr. que me informe pelo e-mail [email protected] se posso compartilhar o texto em questão com algumas pessoas.
Namo Shakyamuni Butsu
Gasshô
José Elias
Professor,
Peço autorização para compartilhar o texto “Vivere Navigare Est” com algumas pessoas.
Namo Shakyamuni Butsu
José Elias
Se me permitem um comentário que me ocorreu sobre isso: quando as pedras são muitas acabam levando a manteiga para baixo também – e vira uma “meleca”.
obrigado professor! ótimo! o comentário sobre as 3 visões foi pra lá de didático. Fátima
excelente, professor!
agora sei duas: esta e Kisa Gotami.
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