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Vivere Navigare Est – Três Visões

Um caminho, aqui.

“Viver é fazer uma viagem” – Três Visões

Acabo de ler o artigo de Leonardo Boff, Minima Theologica: em memória dos mortos de Santa Maria, escrito, aparentemente, para servir de consolo àqueles que aqui ficaram, estupefatos pela tragédia dessa semana em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Diante de mais de 200 mortes de pessoas tão jovens, praticamente meninos e meninas, com tanto a viver pela frente, não apenas o público em geral de nossa sociedade secular, mas também os religiosos tentam dar um sentido para a tragédia. O artigo de Boff é breve e procura ser exatamente isto: um consolo. Em sua visão “viver é fazer uma viagem”. Tal viagem é movimento. Segundo ele: “O barco não foi feito para ficar ancorado e seguro na praia. Mas para navegar, enfrentar ondas, vencê-las e chegar ao destino“. E qual é esse destino? É voltar para “casa, no Reino da vida sem fim“. Apesar das “ondas e desafios”, do sofrimento, da falta de ar, do desespero que quase que certamente acompanhou os últimos momentos de vida, a visão de Boff assegura-nos que: “O importante é saber que do outro lado há um porto seguro. Ele está sendo esperado. O barco está se aproximando. No começo é apenas um ponto levemente acima do mar. Na medida em que se aproxima é visto cada vez maior. E quando chega, é admirado em toda a sua dimensão. Os do porto dizem: Pronto! Chegou! E vão ao encontro do passageiro, o abraçam e o beijam. E se alegram porque fez uma travessia feliz. Não perguntam pelos temores que teve nem pelos riscos que quase o afogaram. O importante é que chegou apesar de todas as aflições. Chegou ao porto feliz. Assim é com todos os que morrem“. Nestes momentos de imensa tristeza o que poderia ser mais reconfortante do que saber que apesar do sofrimento, todos esses jovens chegaram no porto feliz? Para Boff: “O decisivo não é sob que condições partiram e saíram deste mar da vida, mas como chegaram e o fato de que finalmente chegaram“. Todos, então, têm assegurado os abraços e beijos dos que os esperam. Nossa alma é consolada, aliviada, ainda que temporariamente, pela fé de que estão num mundo melhor, definitivo, feliz.

Numa outra visão consoladora, nestes momentos de tragédia coletiva, ouvimos coisas assim: “Essas ocorrências, chamadas catastróficas, que ocorrem em grupos de pessoas, em famílias inteiras, em toda uma cidade ou até em uma nação, não são determinismo de Deus, por ter infringido Suas Leis, o que tornaria assim, em fatalismo. Não. Na realidade são determinismos assumidos na espiritualidade, pelos próprios Espíritos, antes de reencarnar, com o propósito de resgatar velhos débitos e conquistar uma maior ascensão espiritual“. Esta conhecida visão espírita também é consoladora. Aqui não mais Deus está lá no final, de braços abertos para receber as almas daqueles que morreram tragicamente, mas são essas próprias almas, aqui chamados de ‘espíritos’, que escolheram morrer assim. Unidos por um mesmo karma passado, os espíritos se unem antes de se reencarnar e, “com o propósito de resgatar velhos débitos e conquistar uma maior ascensão espiritual“, escolhem o “resgate coletivo”. O karma passado, somos informados, “São ações praticadas no pretérito longínquo, muito graves, e por várias encarnações vamos adiando a expiação necessária e imprescindível para retirada dessa carga do Espírito, com o fim de galgar voos mais altos“. Não houve, então, tragédia. Nada foi acidental. O evento já estava planejado, arquitetado pelos próprios atores, que decidiram, num ato conjunto, realizar a “expiação necessária”. O acidente deve ser visto como oportuno, pois “chega o momento para muitos, por não haver mais condições de protelar tal decisão, e terão que colocar a termo a etapa final da redenção pretendida perante as Leis Divinas. Dessa complexidade de fatos é que geram as chamadas ‘mortes coletivas’“. O consolo é duplo, primeiro por que esses meninos e meninas (no corpo, mas velhos na alma) escolheram eles mesmos fazer o resgate nesta vida; e, segundo, porque isso os levou a “galgar voos mais altos”. Estamos tristes, mas consolados por saber que foi sua escolha morrer assim e que estão num lugar melhor.

Diante dessas duas visões consoladoras, o Buddhismo se coloca naquela posição desconfortável e por vezes antipática de não oferecer consolos imediatos. Um jovem chega até o Buddha, desesperado e cheio de angústia. Seu pai havia morrido e ele, como filho primogênito, precisava cuidar para que sua alma recebesse os ritos necessários. Ele havia ouvido que na região estava um homem muito sábio, um santo, um Buddha. Quem seria melhor que ele para se encarregar dos ritos de seu querido pai? “Venerável Senhor, por favor, me ajude a realizar os ritos para que a alma de meu pai se eleve e se junte ao reino dos deuses“. Buddha contempla a face constrita do jovem. O que poderia ele fazer? Como poderia transmitir algo que ia além do alívio da dor proveniente de um momento tão triste? O Buddha concorda: “Realizarei os ritos, mas você deverá me ajudar“. “Claro, Venerável Senhor! Farei tudo o que me pedir!

O Buddha pede ao jovem dois potes de barro, cordas, manteiga e pedras. O jovem não entende, é um rito desconhecido para ele, mas segue em frente. “Coloque a manteiga num pote, as pedras no outro pote, e dependure ambos no galho daquela árvore que se debruça sobre o rio“. Obediente, o jovem realiza a tarefa. Ele está contente pois participa dos ritos que levarão seu pai ao mundo celestial. O Buddha diz: “Agora, com um pedaço de pau, quebre os dois potes!” O jovem realiza o rito da quebra dos potes e fica exultante, pois agora ele percebe o sentido de tudo aquilo. Ao cair, as pedras vão para o fundo e a manteiga fica boiando na superfície da água. “Ah! Que rito poderoso, as pedras representam as forças negativas que se afundam, e a manteiga é a alma de meu pai que se eleva, livre das amarras! Como é sábio este Buddha!” Mas o rito do Buddha ainda não havia terminado. “Agora, jovem, recite: ‘Pedras, subam à superfície! Manteiga, desça ao fundo!” Confuso, o jovem declara: “Mas, Venerável Senhor, isso é impossível! Qualquer um sabe que as pedras, por serem pesadas, necessariamente afundarão. E a manteiga certamente permanecerá na superfície da água!” “Ó, jovem“, respondeu o Buddha, “você parece saber tão bem sobre o que é possível e impossível. Eu declaro: as pedras e a manteiga são as ações prejudiciais e benéficas feitas pelas pessoas. Dependendo da qualidade das ações realizadas, das palavras ditas, dos pensamentos e emoções mantidos na mente, assim é o futuro. Como as pedras que afundam e a manteiga que se eleva, assim cada coisa segue sua natureza“.

A visão buddhista nos chama para olharmos nossas ações, fala e mente neste momento. Agora é o momento de zelarmos se depositamos pedras ou manteiga em nosso pote. Não é uma visão para alívio imediato. Não há resgates coletivos, escolhas por tragédias, nem apagamento do passado. Não há luzes nem anjos nos esperando, nem certezas de felicidade independente do que fazemos com nossas vidas. Mas há a certeza, inabalável, firme e profundamente tranquilizadora de que se nos dedicamos a untar nossos atos, linguagem e pensamentos com a manteiga da verdade e da compaixão, certamente quando o pote se quebrar, haverá apenas um destino certo.

5 comentários em “Vivere Navigare Est – Três Visões”

  1. Professor,

    Peço autorização para compartilhar o texto “Vivere Navigare Est” com algumas pessoas.

    Namo Shakyamuni Butsu

    José Elias

  2. Se me permitem um comentário que me ocorreu sobre isso: quando as pedras são muitas acabam levando a manteiga para baixo também – e vira uma “meleca”.

  3. obrigado professor! ótimo! o comentário sobre as 3 visões foi pra lá de didático. Fátima

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