Um estudante da filosofia oriental (buddhista e qualquer outra) deve ser um estudante da linguagem, sob pena de absolutamente não entender o tema sobre o qual se debruça. Isso não quer dizer necessariamente que o estudante deva imediatamente iniciar seu aprendizado do sânscrito, pāli, chinês ou tibetano, mas sim, que deve se esforçar por entender as palavras-chaves da filosofia a que se dedica.
Muito frequentemente, palavras comuns que pensamos entender, num estudo mais aprofundado se revelam bem diferentes da impressão que tínhamos anteriormente. É o caso da palavra ‘natureza’, comumente usada até mesmo para designar o Dhamma (skr. Dharma). A raiz da palavra dhamma/dharma, dham, tem o sentido de ‘sustentação’ ou ‘suporte’. Quando aplicado no sentido religioso, seu sentido é aquilo que sustenta o universo, sua ordem natural, e comumente, assim, é traduzido como “lei natural” ou “leis da natureza”. O desavisado logo pulará para a conclusão de que a natureza externa (árvores, animais, as mudanças no clima, etc.), bem como a natureza interna (seus próprios pensamentos, emoções, desejos, etc.) são dhamma, o que não está totalmente errado quando a palavra é tomada em seu sentido mais restrito, mas que, além de severamente limitar o alcance do significado original, ainda leva ao pensamento de que uma vez que tudo é natural, então, tomar refúgio no dhamma é deixar simplesmente tudo acontecer, como isso é, sem influenciar, controlar ou escolher o que quer que seja.
Que esse não seja o caso, já havia sido sugerido por Ajahn Chah, em seu “Uma Tranquila Lagoa na Floresta”, quando dizia: “Com a desculpa de que querem que sua prática seja ‘natural’, algumas pessoas se queixam de que esse modo de vida (a disciplina buddhista em seus vários níveis) não se enquadra em sua natureza. Natureza é a árvore na floresta. Mas, se você constrói uma casa, não é mais natural, não é mesmo? No entanto, se você aprender a usar a árvore, beneficiando a madeira e construindo uma casa, ela terá mais valor para você. Um cachorro é uma coisa natural, correndo de um lado para outro, farejando. Jogue um pedaço de carne aos cachorros e eles se atirarão a ela, brigando entre si. É assim que você quer ser? O verdadeiro sentido do que é natural pode ser descoberto com a nossa disciplina e prática. Essa naturalidade vai além de nossos hábitos, de nossos condicionamentos e temores. Se a mente humana for deixada à mercê de seus, digamos, impulsos naturais, destreinada, ela se apresentará cheia de ganância, de ódio e de ilusão e sofrerá proporcionalmente. E, no entanto, por meio da prática podemos permitir que a nossa sabedoria e o nosso amor cresçam naturalmente, até florescerem em qualquer ambiente”.
Nessa passagem Ajahn Chah aponta para um sentido de ‘natural’ que é descoberto pela disciplina e pela prática. Uma ‘natureza’ é selvagem, sem preparo, espontânea; outra ‘natureza’, superior, é aquela descoberta pela disciplina, limpa, cultivada. A relação de antes e depois, de ‘verdadeira natureza’ como se manifestando ‘após’ o cultivo, não ocorre, porém, num só sentido. Algo não pode ser descoberto a menos que previamente existente ou, pelo menos, previamente possível, o que apenas significa que é existente conforme outra perspectiva. Dhamma, dessa forma, é uma natureza descoberta, mas também aquilo que, existindo antes, possibilita a descoberta.
Um dos mais influentes pensadores e expoentes do Dhamma na Tailândia contemporânea, Ajahn Buddhadasa, explica Dhamma segundo uma quádrupla acepção: 1. A natureza das coisas como realmente são; 2. As leis da natureza; 3. Os deveres que se seguem ao conhecer as leis da natureza e; 4. Os resultados que advêm do cumprimento desses deveres. Note-se, aqui, que em nenhum caso se justifica a interpretação de Dhamma como simplesmente ‘natureza’ ou ‘naturalidade’ dos fenômenos comuns, mas, antes, como os princípios por trás do ‘natural’, o ‘modo’ como as coisas realmente são, o que coincide tanto com o significado da palavra ‘natureza’ na antiga filosofia medieval cristã, quanto nas filosofias hindus e taoistas.
Ao perder as noções filosóficas de princípio e manifestação, nosso estudante desavisado ‘materializa’ o conceito de ‘natureza’, interpretando-o ‘por baixo’, em suma, profanando-o, ou para quem não gostar desse termo, tornando-o mundano. Paralelamente a isso, ou quem sabe, consequente a isso, o conceito de ‘natureza’ é igualmente sentimentalizado, transformado em impressões emotivas sem valor intelectivo, mas propício para causar sensações agradáveis.
Bhikkhu Bodhi, certa vez, disse que: “Qualquer fenômeno particular representa muito mais do que é imediatamente visível mesmo em uma sondagem profunda. Uma semente, por exemplo, tem um significado muito maior do que o grão de matéria orgânica visto pelo olho”. Em nossa visão secularizada, materialista e sentimentalista, os fenômenos passam a ter um valor em si mesmos, revestem-se (como resultado de nosso modo particular de consciência) em possuidores de ‘substâncias próprias’, e a ‘beleza’ que neles vemos é a beleza das formas cruas (sentimentalizadas por nossas tendências subjacentes internas) ao invés da beleza pelo que significam.
O materialista vê apenas árvores e pedras, rios e montanhas; o sentimentalista apenas a beleza das sensações agradáveis. O estudante sério repete com Ajahn Chah: “Podemos aprender o Dhamma a partir da natureza, das árvores por exemplo. Uma árvore nasce devido a causas, e cresce seguindo um curso natural. Ao nosso redor uma árvore está a nos ensinar o Dhamma, mas nós não entendemos isso. No devido tempo, ela cresce e cresce até que floresce e frutas vão aparecer. Tudo o que vemos é a aparência das flores e frutas; somos incapazes de trazer isso para dentro de nós e apreciá-lo. Assim, não sabemos que uma árvore nos está a ensinar o Dhamma. A fruta aparece e nós limitamo-nos a comê-la sem investigar: doce, azeda ou salgada, é a natureza da fruta. E isso é o Dhamma: o ensinamento da fruta” (Abrindo o Olho do Dhamma). O materialista vê ‘dados’, o sentimentalista apenas ‘sente’, o estudante sério busca compreender.
Quando Ajahn Buddhadāsa declara que Dhamma é: “O segredo da natureza que deve ser entendido de modo a desenvolver a vida para seu mais alto benefício”, ele está apontando para aquilo que está invisível aos olhos daquele que apenas se preocupa com os ‘fatos’.