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Monges, Sexo, Família, Dinheiro e etc.

Monges nunca tiram suas vestes monásticas
e estão submetidos a regras de disciplina.

É algo comum nos dias de hoje ver pessoas leigas passando julgamentos a respeito de como a vida monástica deve ser. O argumento, se é que isso é um argumento, segue mais ou menos nestas linhas: “Qual o problema de o monge se casar?”, “Por que a religião (escreva aqui ‘Cristianismo’ ou ‘Buddhismo’) quer proibir (censurar, coibir, aprisionar, e qualquer outra palavra que soe bem autoritária) o coitado do sujeito que quer levar uma vida espiritual?”, “Afinal, religião não é para prender, é para libertar!”, “É por isso que não gosto de religião, eu sou é espiritualista!”

Por trás de todas essas afirmações a respeito da vida monástica, o que há realmente por trás é simplesmente ignorância sobre o que ela consiste. É a confusão entre a ‘escolha de um modo de vida’ e o ‘exercer uma função’. Uma coisa é o monge, que escolheu um modo de vida dedicado à realização das verdades dos ensinamentos do mestre (seja Buddha ou Jesus), outro é o ministro, pastor ou professor de dharma (que recebe no Buddhismo diferentes nomes dependendo de sua tradição: lama, ajahn, sensei, achariya, ministro de dharma, etc.), que passou por um treinamento para realizar ritos e cerimônias, conduzir práticas, ministrar palestras, etc.

Monge não é padre nem sacerdote com funções de celebrar ritos e cuidar de uma comunidade de fiéis. Monge não tem como função obrigatória ensinar. O monge só é, sem precisar ter funções ou responsabilidades de fazer algo em relação aos outros em termos religiosos. Sua função, se assim podemos nos expressar, é viver uma vida santa, e atingir aquilo para o qual ela se destina. Se ele ensina no caminho ele o faz porque quer, mas não porque faz parte de ser monge. O fato de alguém passar a ser monge não implica de modo algum que automaticamente ele possa ensinar, celebrar, etc., pois seu é um estilo de vida, não uma função. Já o professor ou ministro de dharma, quando assim chamado, implica numa função específica, que se ele não a exerce, não há sentido para ser assim chamado. Ser professor independe de seu estilo de vida. Daí que se pode ter professores (ou lamas no Buddhismo tibetano ou outros nomes em outras escolas buddhistas) que são casados, trabalham, têm uma vida social, etc. Já monges têm seu estilo de vida regulado por regras precisas, que não envolvem a obrigação nem a competência em ensinar. Daí que monges nunca tiram suas vestes monásticas e estão submetidos a regras de disciplina (você não troca sua escolha de vida nem escolhe quando irá cumprir as regras ou não), enquanto que professores buddhistas laicos, ao contrário dos monges, podem ou não vestir, em determinadas ocasiões, como quando ensinam ou celebram um rito, roupas diferentes das roupas civis, é uma escolha deles.

Sendo assim, não é que a religião obriga os ‘coitados’ que se tornaram monges a não se casarem, não exercerem tarefas remuneradas para uso pessoal, etc., mas é justamente o contrário, tais pessoas se tornam monges justamente porque não querem participar de uma vida leiga, socializada e envolvida com certos sentimentos comuns numa vida bastante conectada com aquisições, segurança, prazer, responsabilidades familiares, etc.

Um entendimento do que seja o objetivo da vida monástica do ponto de vista buddhista pode ser obtido de sua descrição no próprio código monástico (vinaya): “Este dhamma ensinado pelo Bem-Aventurado de várias formas é para o se desapaixonar, não para a paixão; é um dhamma ensinado para se estar sem grilhões, não para ficar preso; é um dhamma ensinado para não se agarrar, não para promover o apego;… é um dhamma ensinado pelo Bem-Aventurado de várias formas para o desaparecimento da paixão… para a rendição da arrogância… para a restrição do desejo, para a abolição do apego… para a aniquilação do desejo sedento, para a não paixão, para a parada, para a diminuição. A destruição dos prazeres dos sentidos foi declarada de muitas formas pelo Bem-Aventurado, o completo entendimento das ideias sobre os prazeres dos sentidos foi declarado, a restrição do apego aos prazeres dos sentidos foi declarada, a eliminação dos pensamentos sobre os prazeres dos sentidos foi declarada, o arrefecimento da febre pelos prazeres dos sentidos foi declarado. Que isso seja para o benefício dos que não creem, e para o aumento do número dos que creem”.

Isso significa que para quem toma os votos monásticos segundo o Vinaya, os únicos que podem apropriadamente serem chamados de ‘monges’, o celibato não é uma imposição da instituição, mas sim aquilo que voluntariamente esses homens e mulheres escolhem fazer. Como diz o Venerável K. Sri Dhammananda: “Buddhistas que renunciaram à vida no mundo voluntariamente observam este preceito, porque estão plenamente conscientes dos compromissos e dos problemas que advém da vida em família. A vida conjugal pode afetar ou limitar o desenvolvimento espiritual quando o desejo por sexo e o apego ocupa a mente, e a tentação obscurece a paz e pureza da mente”. Todas as escolas buddhistas têm o celibato presente no voto monástico, caso contrário, não seria um voto monástico. O monge, no Buddhismo, tenta exemplificar um determinado ideal, aquele de renúncia, não necessidade de envolvimento com fontes constantes de prazer sensorial, vida simples, até mesmo pobre. Seu estilo de vida reflete este ideal, o de servir de exemplo, ou como diz o Vinaya: “Que isso seja para o benefício dos que não creem, e para o aumento do número dos que creem”.

Como diz Bhikkhu Bodhi em “Estilos de Vida e Progresso Espiritual”: “O estilo de vida monástico faz isso justamente porque o objetivo final é um estado de renúncia, ‘o abandono de todas as aquisições’ (sabb’upadhi-paṭinissagga), e desde o início a vida do monge está enraizada na renúncia. Ao ‘abandonar a vida no lar’, o monge deixa para trás família, posses, posição social e até mesmo as marcas exteriores de identidade pessoal, simbolizadas pelo cabelo, barba e vestimentas do seu armário. Por raspar a cabeça e vestir-se com o manto amarelo, o monge renunciou – pelo menos em princípio – a qualquer afirmação de uma identidade própria. Exteriormente indistinguível de cem mil outros monges, ele se tornou simplesmente um ‘Sakyaputtiya samaṇa’, um asceta que segue o filho de Sakya (i.e., o Buddha). A vida do monge envolve simplicidade radical, contentamento com os requisitos mais básicos, necessidade de ser paciente nas dificuldades. O estilo de vida monástico coloca o monge em dependência da generosidade e da bondade dos outros, e impõe-lhe um intricado código disciplinar, o Vinaya, destinado a promover as virtudes renunciantes essenciais da simplicidade, contenção, pureza e não violência. Essas virtudes proveem uma base sólida para as realizações superiores da concentração e da introspecção que são, essencialmente, estágios na purificação progressiva da mente e do aprofundamento da visão”.

Reunião de professores buddhistas americanos:
professores buddhistas, ao contrário de monges,
podem ou não vestir, em determinadas ocasiões,
roupas diferentes das roupas civis,
é uma escolha deles.

Esclarecido isso, podemos agora compreender mais claramente como a palavra monge e professor de dharma (lama, ajahn, sensei, achariya, ministro de dharma, etc.), não são termos intercambiáveis. Como ser monge é um modo de vida, não faz parte necessariamente de seu treinamento ser professor, nem mesmo estudar extensivamente. Ele deve saber o suficiente para praticar o que deve ser praticado, conhecer as regras e os votos monásticos, levar uma vida pura e ser um exemplo de renúncia e pureza para o resto das pessoas. Ele não celebra cerimônias de cunho comunitário, como casamentos, ‘batizados’, etc., pois estas são funções do padre, ministro, sacerdote, etc., os quais foram treinados para tal, ao contrário do monge. O professor, por sua vez, é alguém que seguiu neste caminho de aprendizado, treinamento, estudo e reverência a seus professores, e recebeu uma autorização ou certificação para tais funções. Ele não precisa ser monge, e seu estilo de vida, tanto quanto se mantenha dentro dos preceitos laicos, não é regido por regras do Vinaya monástico. Monges podem ser professores (provido terem as qualificações necessárias), e professores podem ser monges (provido desejarem adotar esse estilo de vida), mas um não implica no outro nem o outro no um.

PS: Foi-me indicado que um Sr. que se diz pertencer ao Theravada e que há anos se deleita em escrever contra mim  e outros professores de dharma por todos os meios que lhe é possível, é também, surpresa surpresa, um leitor deste blog. Obrigado pela visita! Ele acaba de escrever outra pérola, agora contra este artigo aqui, onde demonstra não apenas saber muito pouco sobre história do Buddhismo, mas que simplesmente carece de habilidade em ler um texto. Ao ler o artigo acima o que ele consegue entender é o seguinte: “[O artigo] diz que faz mais sentido que professores leigos ensinem o Dhamma do que os monges. Isso está correto?”. Como ele conseguiu interpretar isso, só Deus sabe, mas isso é o que ele faz há anos em diversos lugares, em listas e fóruns em que ele entra com a finalidade de mostrar para os outros o que é correto. Seu bem conhecido modo de argumentar consiste em dizer que você falou uma coisa que você não disse e aí começa a fazer longas críticas sobre isso que você não disse, mas que ele acredita que você disse e tenta fazer seus leitores acreditarem também. No final de seu “comentário” a este artigo ele conclui: “Apenas uma pessoa com um elevado grau de purificação mental está qualificado para ensinar o Dhamma”, como argumento de que somente monges deveriam ensinar e que portanto qualquer das dezenas de professores leigos presentes no Brasil, deveriam ser provavelmente lançados ao fogo do inferno na opinião dele, além de provar que o artigo está errado. Claro que a única coisa que ele prova é que não sabe interpretar aquilo que lê, ou distorce propositadamente com o objetivo de mera crítica agressiva sem base na esperança de que seus leitores também sejam enganados. O que ele não explica é porque ele mesmo dá palestras veiculadas por dois grupos que se autodenominam budistas, mas que inacreditavelmente parecem aprovar suas atitudes de difamação e agressividade gratuita e recomendam seu site. No final de 2012, ele até mesmo se dispos a conduzir um retiro de meditação (que fracassou) como professor. Em resumo suas observações seguem em três tempos: 1, ao ler este artigo ele conclui que está errado, pois o artigo estaria, na opinião dele, dizendo que leigos tem mais capacidade de ensinar (coisa que absolutamente o artigo não diz e seria um absurdo se dissesse). 2. então resolve dizer o que é o certo na opinião dele, isto é, que se as pessoas não tem um monge com quem aprender (e que ele parece acreditar que pelo simples fato de alguém ser monge já é qualificação suficiente para ensinar!), então é melhor ficar apenas lendo (ele diz isso literalmente: “resta o consolo de terem vasto acesso direto aos ensinamentos do Dhamma em vários idiomas e assim podem abrir mão da dependência de um professor”); e conclui 3. que somente quem tem “elevado grau de purificação mental” é que pode exercer algum tipo de ensino. Como ele mesmo se propõe a ensinar, ele mesmo está declarando ter “elevado grau de purificação mental”. É preciso falar mais alguma coisa?