Para aqueles não familiarizados com a formação da comunidade monástica buddhista, pode parecer estranho a existência de um corpo de regras (Vinaya) presente numa doutrina que tão comumente é associada com a liberdade. Aos olhos modernos, muito frequentemente ‘liberdade’ é poder fazer o que quiser, seguir os ditames da própria vontade e desejos, e nada poderia estar mais em oposição a esses ideais libertários que regras a serem aceitas e obedecidas. Aqueles, entretanto, que desejam seguir um modo de vida monástico fazem exatamente isto: aceitam para si um extenso conjunto de regulações e preceitos de treinamento como passo inicial de sua nova vida, regras que serão seguidas enquanto desejarem permanecer como monges/monjas.
A presença central do Vinaya na comunidade monástica deve indicar algo claro para nós: nossa visão da ‘liberdade’ é que deve ser reavaliada. Ser livre não é fazer o que se quer, pois tal nada mais é que permanecer na prisão, a prisão das vontades, desejos e condicionamentos, piorada pela ignorância de achar que tal ‘liberdade’ é a verdadeira.
O Vinaya, tanto antes quanto agora, tem duas funções básicas: criar as melhores condições para a prática espiritual dentro da comunidade monástica, e assegurar a harmonia das relações entre a comunidade monástica e a comunidade leiga em geral. A primeira função é cumprida por meio de um minucioso conjunto de comportamentos, alguns incentivados, outros proibidos, os quais são formulados para tornar a vida comunitária fácil de ser vivida, com o menor potencial para atritos, liberando os indivíduos para a prática e o estudo do caminho delineado pelo Buddha. A segunda função se destina a manter harmoniosa a relação entre a comunidade monástica e a comunidade leiga, uma relação que originariamente foi estabelecida pelo Buddha como extremamente simbiótica e interdependente.
A vida monástica não é para ser uma vida de isolamento. O monge/monja é mostrado como sendo totalmente dependente do leigo para seu sustento. Sem leigos não há absolutamente qualquer possibilidade de haver monges, pois deles o monge recebe o alimento diário, requisito fundamental para que possar levar adiante sua vida dedicada ao caminho do Buddha. Paralelamente, o seguidor laico, além de sua própria prática e de seu estudo individual, passa a ter a possibilidade de praticar a virtude da generosidade ao ajudar ativamente aqueles que se dedicam a trilhar o monasticismo, oferecendo o alimento e os recursos para que possam aprender mais rapidamente.
O Vinaya sempre foi e continua sendo a base de toda comunidade monástica buddhista. Podemos mesmo dizer que monasticismo e Vinaya são uma só coisa. Não há monasticismo sem vinaya, e o vinaya automaticamente cria um monasticismo.
A entrada gradual do Buddhismo em solo chinês aconteceu em diversas frentes, algumas delas como movimento puramente filosófico, outras como meras práticas meditativas e ainda outras por meio de transmissões integrais ou apenas parciais do vinaya e, portanto, por meio do monasticismo.
Por vezes é sugerido que o mestre ch’an/zen Pai-chang Huai-hai ou Baizhang Huaihai (720-814, em japonês Huakujô Shingi) teria escrito um “Código Monástico” considerado como o mais antigo texto zen sobre o tema. Baizhang é o oitavo patriarca chinês a partir de Bodhidharma, e o leitor imediatamente pensaria como pode ser que o primeiro texto zen sobre monasticismo apenas seja escrito na época do oitavo patriarca, afastado, assim, centenas de anos do suposto início do Ch´an / Zen na China. Isso significa que o Zen não teve um vinaya em seus primórdios? Isso é mais ou menos verdade. O que isso significa é que durante os trezentos anos que separam Bodhidharma, o mítico fundador do Zen na China, até o oitavo patriarca, o Zen não teve uma instituição própria, mas era praticado em mosteiros de outras escolas. É somente com o “Código Monástico de Baizhang” que pela primeira vez o Zen passa a ter um conjunto de regras para servir de base para a independência do Zen enquanto instituição.
A autoria do texto a Baizhang (Pai-chang), porém, carece de evidências históricas e menções a tal texto somente aparecem na dinastia Sung (960-1279), adiando ainda mais a existência de uma instituição característicamente zen em solo chinês.
Outra conclusão que se chega é que para ser necessário alguém criar um conjunto de regras para a vida monástica isso significa que as regras originais promulgadas pelo Buddha ou já estavam perdidas nessa época ou se teve a intenção deliberada de modificá-las. Enquanto que o Vinaya é “transmitido” por uma cadeia sucessória na comunidade monástica, “regras comunitárias” podem ser criadas por indivíduos ou grupos. Em outras palavras, regras ou preceitos não são sinônimos de Vinaya. O uso chinês, entretanto, junta ambas as palavras, criando o composto jielü (preceitos / vinaya), indicando uma composição de seleções do Vinaya com preceitos e regras locais, definindo o tipo de adaptação chinesa das transmissões indianas. É o início da preponderância da escolha de partes em relação ao material integral recebido desde o Buddha.
Uma destas adaptações foi a introdução do trabalho braçal no campo. É incorreto dizer que o Vinaya proíbe o trabalho no sentido geral. Monges que seguem o Vinaya, desde os tempos antigos até a época atual, trabalham, e muito. A introdução específica do trabalho no campo nas regras para monges zen possibilitou, porém, que eles tivessem uma vantagem sobre as outras escolas durante períodos de recessão, de fome e de perseguições como a Grande Perseguição Anti-buddhista do Imperador Wuzon na Dinastia Tang (IX século d.C.) Os monges zen foram capazes de sobreviver muito melhor que outras escolas, pois podiam plantar seu próprio alimento.
Toda mudança, entretanto, ainda mais quando se trata do Vinaya estabelecido pelo Buddha, tem mais do que uma só consequência. A modificação do Zen para os monges trabalharem no campo fez com que fosse permitido aos monges matar as criaturas que sempre são mortas nas atividades de plantio e colheita, razão porque o Buddha promulgara a regra de que monges não deveriam trabalhar em atividades no campo. O trabalho no campo também permitiu que os monges acumulassem a colheita do que plantaram, ferindo outra regra do Vinaya sobre a não acumulação. Com a estocagem dos produtos cultivados, gradualmente os mosteiros Zen se tornaram mais ricos, com mais terras e posses, atraindo ladrões e os olhares dos imperadores e governadores regionais, tornando necessário que os monges criassem meios de defesa de suas posses (eis aí o incentivo para o desenvolvimento das artes marciais em ambientes monásticos chineses), coisas que são impensáveis em mosteiros seguindo o Vinaya estabelecido pelo Buddha, onde não há o que ser roubado, nem posses a serem ‘defendidas’.
Dentre todas as consequências a mais crítica, porém, foi a quebra da harmonia interdependente entre a comunidade monástica e a comunidade leiga. Monges autosuficientes não precisam de mais nada da comunidade leiga, eles podem viver isoladamente, por si próprios e para si próprios, exatamente o contrário da vontade do Buddha que queria demonstrar a vida espiritual como um exemplo de interdependência.
No decorrer dos séculos a quebra do Vinaya e a adaptação por meio de regras locais criadas por indivíduos levou os monges a poderem trabalhar também recebendo remuneração, constituir família e serem proprietários de templos. De propriedades comunitárias que não pertencem a ninguém, mas sim ao grupo de monges que lá vivem no momento, os templos passaram a ser hereditários, sendo passados de pais para filhos. Com monges que trabalham na lavoura e fazem trabalhos remunerados, se casam e têm filhos para os quais repassam seus templos e suas rendas, o ciclo se completa e os que eram monges voltam a ser leigos – nas ações, mas não nos títulos – e não há mais diferença entre monges e leigos a não ser as roupas que vestem, ou nem isso, quando as roupas especiais são usadas apenas durante cerimônias, ao contrário dos monges que seguem o Vinaya que nunca as tiram. Os homens mudam o Vinaya que receberam do Buddha e acabam mudados por suas mudanças.
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