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Zen e Vipassana

Na maior parte das vezes quando pessoas com uma formação tentam fazer comparações de sua prática com a prática de outros o que ocorre é um fenômeno de distorção inconsciente da posição do outro a fim de favorecer sua própria posição. Isso não é um fenômeno novo, e no Buddhismo também acontece. Quando Vasubandhu no século V resolvia escrever diálogos hipotéticos com um opositor sarvāstivāda ou sautrāntika, dificilmente poderíamos confiar que a posição dos opositores era exatamente aquela delineada. Assim, hoje, alguém do Theravāda resolve comparar sua tradição com os ensinamentos tibetanos e chega a certas conclusões. Alguém do Buddhismo tibetano resolve comparar o Vajrayāna com o Theravāda e chega a outras, e assim por diante. No mais das vezes as conclusões são favoráveis à tradição que ele mesmo segue, e isso é feito às custas da integridade da posição do oponente. Nossas preferências e gostos entram inconscientemente no fluxo de nossas percepções.

Comparações são difíceis, mas isso é exponencialmente tornado perigoso quando o indivíduo que resolve comparar não tem qualquer experiência de fato com a doutrina ou com a prática do elemento comparado. Que fique claro, acho comparações importantes e úteis em muitos casos. Mas elas devem ser equilibradas, apresentadas com base e mantendo a integridade de ambos os elementos a serem comparados.

Diante da crescente divulgação de Vipassanā no Ocidente, alguns no Zen resolvem se aventurar a compará-la com sua própria experiência de meditação. Escrevo, então, alguns apontamentos que possam servir de contraponto e esclarecimento a respeito de vipassanā.

Primeiramente, Vipassanā não é uma meditação ou técnica específica, mas sim um objetivo. Há um geral mal entendimento do público, e mesmo entre buddhistas, a esse respeito. Vipassanā é a palavra usada para indicar o objetivo de alcançar o insight e a visão clara da realidade das coisas como elas são. Sendo assim, vipassanā nem é limitada a uma técnica específica, nem ao menos é algo exclusivo da tradição Theravāda, ainda que sob seu nome em pāli tenha sido atualmente mais associada a tal tradição.

Quando alguém entende enganosamente que vipassanā consiste de uma técnica particular, ele vai em busca, provavelmente em livros ou ‘ouvir dizer’, sobre o que consiste tal ‘técnica’ e encontra exercícios básicos de observação da respiração e do corpo e, sem experiência factual com a tradição em questão e com a totalidade de seus procedimentos, ‘pula’ para a conclusão de que vipassanā se trata de exercícios básicos e preparatórios de observação dualista (que mantém continuamente uma separação entre sujeito e objeto), exercícios que consistem de contar respirações e observar partes de seu próprio corpo.

Se quem resolve ‘pular’ é alguém do Vajrayāna, é possível que ele olhe aquilo como práticas inferiores (hīnayānas) e egoístas, tão distantes dos altos picos do caminho superior que desenvolve o coração de compaixão por todos os seres. Se quem resolve ‘pular’ é alguém da Terra Pura, é possível que ele olhe aquilo como práticas de autopoder, um esforço vão de conquistar o nirvāṇa à força, uma prática excludente, elitista e arrogante. Quão melhor não seria o praticante se entregar ao poder de um Buddha que possa salvá-lo? Se quem resolve ‘pular’ é alguém do Zen, é possível que ele olhe aquilo como práticas gradualistas, duais e preparatórias para iniciantes, tão diferentes do caminho direto que une sujeito e objeto, numa unidade com a natureza búddhica primordial. Não é tão melhor seguir o caminho direto e uno do que uma prática dualista que separa todo o mundo em observador e observado? Note-se bem que isso são possíveis conclusões de quem resolver ‘pular’ para conclusões sem antes um exame profundo. Não é necessariamente a posição de todos.

Não seria possível, por questões de tempo e espaço aqui, tratar de todos esses mal-entendimentos causados principalmente por não se conhecer apropriadamente o objeto comparado nem se ter experiência efetiva nas práticas em questão. Limitemo-nos, assim, a tocar apenas em algumas observações que o Zen talvez possa fazer em relação ao Vipassanā, que, saliento, não penso ser posições do Zen em si, mas apenas de quem resolve ‘pular’ para conclusões baseadas não na experiência, mas no ‘ouvir dizer’. Serão observações simples, apenas para ajudar as pessoas a ter elementos com os quais pensar quando se veem diante de comparações.

  • Vipassanā não é uma técnica de meditação.
  • Vipassanā não é exclusiva da escola Theravāda, ainda que seu entendimento varie de linha para linha em outras escolas.
  • O treinamento em vipassanā é gradualista, mas isso não deve ser visto como um termo pejorativo. Por tudo que podemos depreender das escrituras, antigas e mahāyānas, o sistema preferido do Buddha é gradualista, a maior parte das escolas buddhistas o são, e somente no Zen, num dado momento de sua história, se desenvolveu uma perspectiva “imediacionista”, perspectiva frequentemente questionada em seu próprio seio por enfatizar apenas um lado do caminho espiritual. O grande mestre zen coreano, Chinul, do século XII, sintetizou bem o caminho verdadeiro como tonochômsu, “a iluminação é repentina, mas a prática é gradual”. Tomar somente um dos lados como o verdadeiro é um entendimento limitado.
  • Vipassanā como entendido pelo Buddha leva do estágio preparatório ao estágio final, por através de uma série de desenvolvimentos, e não pode ser confundido com técnicas de olhar a respiração ou o pé.
  • Shinkantaza, no Zen de Dōguen, se parece muito com uma das modalidades de Vipassanā. Opor Shikantaza a Vipassanā é não entender o que seja Vipassanā nem conhecer suas várias linhagens e nuances.
  • O Zen japonês bebe e expressa muito da cultura japonesa e não deve ser considerado como a expressão por excelência e única do Zen, nem seu parâmetro exclusivo. Comparar o aspecto “disciplinar” com ênfases (minuciosas e até obsessivas em alguns lugares) de seu interesse na ordem, organização, limpeza e detalhismo com qualquer outro treinamento no Buddhismo, e não apenas em Vipassanā, é tentar impor um molde hierárquico e rigidamente disciplinar que fará com que qualquer coisa comparada seja tomada como relaxada e com menos exigências. Outras escolas podem ser tão disciplinadas e exigentes, mas de modos diferentes. Um predomínio do estilo japonês no Buddhismo brasileiro pode fazer com que o iniciante pense que isso é o Buddhismo em si. Não é.

Muito mais poderia ser dito, mas creio que isso é suficiente para tornar a mensagem clara. Uma sugestão melhor para pessoas de outras tradições que quiserem saber sobre vipassanā, é entrarem em contato com lugares que efetivamente desenvolvem essa perspectiva.

 

 

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3 comentários em “Zen e Vipassana”

  1. Como praticante leigo, mais ligado ao Zen e com algumas experiências no Theravada e Tibetano, vejo que o Zen também tem um aspecto gradualista, se é que eu entendi bem este termo. Isto pode ser claramente notado no livro Além do Despertar de Albert Low que conta sobre a tragetoria do monge Hakuim rumo a iluminação. Pelo que entendo, Vipassana são estágios de visão penetrante da realidade última que são equivalentes ao Satori e Kensho no Zen.
    O praticante começa a ter estas vivências, mas isto não é o final do caminho e somente uma nova fase com várias etapas e diferentes níveis até chega à uma iluminação perfeita.
    Muito facilmente o praticante se perde no meio do caminho por achar que já compreendeu tudo!

    1. Obrigado pela colaboração, Bruno. Pois é, as comparações que menosprezam um ou outro não se referem às tradições em si, mas apenas aparecem entre pessoas que ou não conhecem o suficiente e resolvem opinar, ou resolver distorcer a posição alheia com fins de exaltar a própria tradição. Se o Buddhismo no Brasil quiser ter alguma chance de existência saudável isso se dará pela compreensão e diálogo e não por afirmações soltas visando diminuir as outras tradições.

  2. aproveitando o tema “comparação” e a variedade e qualidade do público leitor deste blog, compartilho que, tendo feito algumas leituras sobre e de instrutores dzogchen da atualidade em paralelo com leituras de instrutores do cânone antigo, que é com o que mais me identifico, acabei por enxergar alguma afinidade entre aquilo que é definido nas respectivas tradições pelos termos rigpa e anidassana vinnana. fiquei curioso em saber se há alguém mais que já tenha tido a impressão ou mesmo se há artigo sobre o assunto…
    obrigado.

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