Uma entrevista com Joseph Goldstein
Inquiring Mind: Você poderia explicar rapidamente as três características e
o papel que elas desempenham nos ensinamentos do Buddha?
Joseph Goldstein: As três características – impermanência, sofrimento e não
eu, são uma clara e sucinta descrição da natureza dos fenômenos
condicionados. Quando olhamos, nós vemos que toda experiência está
constantemente mudando que é, portanto, não confiável; e esta experiência
surge devido a condições e não de um desejo nosso de que as coisas sejam de
um certo jeito. Entretanto, apenas a compreensão dessas três
características não é suficiente. É a sabedoria que se adquire ao
experienciá-las profundamente que liberta a mente do apego.
O perigo, eu acho, em qualquer tradição espiritual é permanecer no nível
filosófico. No Buddhismo, podemos facilmente nos perder só no pensamento das várias listas – as Quatro Nobres Verdades, o Caminho Óctuplo, os Cinco
Obstáculos, os Sete Fatores da Iluminação. É importante seguir essas formulações dos ensinamentos na sua essência e explorar como elas podem servir para a nossa libertação para que estejamos, ao mesmo tempo, conectados e inspirados pela verdadeira mensagem do que o Buddha ensinou.
I.M: Portanto, as três características são os meios hábeis e a mente sem
apego é o fruto?
J.G: Correto. As três características não são apenas afirmações filosóficas
sobre a natureza do universo; isto não é o que importa. Elas são práticas.
Existe um grande paradoxo aqui, porque essas verdades são ao mesmo tempo,
óbvias e ocultas.
Elas são óbvias quando fazemos o esforço correto para realmente despertarmos
para elas no momento presente e elas são ocultas quando nós, simplesmente,
somos carregados pelas energias do hábito nas nossas vidas.
Por exemplo, por um lado, a impermanência é tão óbvia para quase todas as
pessoas que, a grosso modo, nós geralmente a ignoramos. É uma verdade tão
comum que não lhe damos nenhuma importância. E no entanto, quando realmente
prestamos atenção, quando trazemos energia e um interesse real para esse
entendimento, quando estamos realmente e vitalmente experimentando a
impermanência da nossa experiência presente, nesse momento a mente não está
se apegando. Esse é um fruto imediato – a mente livre de contrações, um
coração relaxado.
I.M: Nos ensinamentos do Buddha, você acha que é dada mais importância a
alguma das três características como uma porta de acesso para a libertação?
JG: Na teoria do abhidhamma, qualquer uma das três características é
potencialmente a porta para a libertação: as pessoas podem ir pela porta da
impermanência, pela porta do sofrimento ou pela porta número três do não-eu.
Na prática do dhamma, qualquer uma das três características se apresenta
mais prontamente para pessoas de temperamentos diferentes. Aquelas que vão
pela porta da impermanência têm uma tendência para a fé; aquelas que vão
pela porta do sofrimento têm uma facilidade para a concentração; e aquelas
que vão pela porta do não-eu têm uma sabedoria desenvolvida.
I.M: Como é que a porta da impermanência está ligada com a fé?
JG: Quando estou experimentando completamente a impermanência, a imagem que
surge com frequência na mente, é a da prática de “rafting” em corredeiras.
Nossa resposta ao perigo parece ser, ou de pânico e nos agarrarmos, ou de
nos soltarmos completamente. Depois de termos passado por algumas
corredeiras, desenvolvemos a fé e confiança para nos entregarmos e nos
soltarmos. Nesse ponto da experiência, a fé parece ser a opção mais sábia.
I.M: Existe algum padrão de progressão meditativa que passa pelas três
características?
JG: Nos estágios tradicionais de insight, cada uma das três características
se tornam predominantes em diferentes momentos. Por exemplo, um estágio
inicial no aprofundamento real da prática é aquele do “surgir e desaparecer”,
quando a pessoa vê a transitoriedade dos fenômenos muito claramente.
Seguindo essa experiência profunda da impermanência, existe o insight do
sofrimento proveniente desses fenômenos que estão mudando constantemente.
Vemos a dissolução de todas as coisas, o que com frequência desencadeia os
estágios de “medo, miséria e desgosto” – tudo isso como parte do insight
crescente sobre a verdade do sofrimento. Dentro desse processo, a pessoa
começa também a ver a qualidade não eu dos fenômenos que nos leva à
equanimidade e libertação final.
I.M: Como você descreveria impermanência?
JG: Impermanência é a verdade básica universal e constante da mudança.
Impermanência é, ao mesmo tempo, um processo contínuo de perda, no qual as
coisas existem e então desaparecem, e um processo contínuo de renascimento
ou criatividade no qual as coisas que não existem repentinamente aparecem.
Podemos ver isso momento a momento na meditação. Por exemplo, sons,
pensamentos ou sensações continuamente desaparecendo e novos surgindo.
Podemos, também, ver isso claramente em situações corriqueiras das nossas
vidas. Onde foi parar nossa experiência do café da manhã lá pelo fim da
manhã? Onde ficou aquela conversa que tivemos com um amigo, no dia seguinte?
Algumas vezes, estamos mais conscientes das coisas novas que estão surgindo,
e outras, notamos o seu desaparecimento. Mas, a mudança é sempre óbvia
quando prestamos atenção.
Eu acho muito poderosa a prática de prestar atenção, momento a momento, na
experiência da mudança. Ao invés de somente ficar perdido no conteúdo do que
está acontecendo, é possível, simultaneamente, prestar atenção ao fato de
que a experiência está se alterando e fluindo. Isso não é uma coisa tão
difícil de se fazer, mas é mais difícil lembrar de fazê-lo.
Sermos capazes de manter essa perspectiva da natureza transitória da
experiência, mesmo quando estivermos passando por ela, ajuda a aliviar a
ansiedade na nossa mente. Daqui a seis meses, será que nos lembraremos da
raiva ou tristeza ou mesmo da alegria desse momento? Isso não significa que
não devamos ser sensíveis ou responsáveis pelo que está acontecendo ao nosso
redor, mas deveríamos sim olhar com o entendimento de que tudo está sempre
mudando. Nós sabemos dessa verdade de forma abstrata mas com frequência, não
desfrutamos dessa sabedoria. O ponto principal, realmente, é como usar a
impermanência como um método para libertar a mente.
I.M.: Nós vemos a mudança acontecendo ao nosso redor, mas não é ainda mais
importante ver que nós mesmos estamos mudando?
JG: Esse é um ponto importante. Ver impermanência não será tão eficiente se
ainda acreditarmos que o observador é sólido ou concreto. A consciência da
impermanência deve incluir o observador, nós mesmos, para que ela seja um
lugar de libertação real. Isso pode ser muito sutil. Poderemos até saber que
nossos pensamentos e sentimentos se mantêm mudando constantemente, mas será
que investigamos a exata natureza da nossa mente que sabe? O que é
consciência, e, ela é impermanente também? É claro que é fácil para mim,
fazer estas perguntas, sentado aqui enquanto converso com você. O desafio
real é olharmos profundamente e vermos por nós mesmos (ou não-nós mesmos).
I.M.: S.N. Goenka faz com que seus estudantes foquem na impermanência das
sensações físicas, como um meio de conscientizar que o observador está
também em processo de mudança.
J.G: Essa é uma prática muito poderosa para muitas pessoas. E quanto mais
for praticada, mais a pessoa poderá ficar consciente ao longo do dia.
I.M: De que outras formas podemos cultivar a habilidade de estarmos mais
conscientes da impermanência no nosso dia-a-dia?
JG: Coloque um grande aviso na geladeira: “Preste Atenção à Mudança”!
(Risos) A consciência da impermanência é completamente acessível o tempo
todo. Acho que existe uma crença enganosa nos círculos do dhamma, de que o
insight profundo só pode vir durante retiros intensivos. Eu aprecio
verdadeiramente o que acontece nos retiros, mas a natureza do mundo e a
natureza das nossas mentes são exatamente as mesmas se estivermos em retiro
ou fora dele. Saia para uma caminhada, abra a porta, ou mesmo movimente a
sua mão. Impermanência está sempre ali. Note o que acontece em cada simples
atividade durante o dia. Sons, visões, sensações e pensamentos estão
continuamente mudando. Quanto mais notarmos isso, menos nos agarraremos e
nos apegaremos. Quanto menos agarrarmos e nos apegarmos, mais tranqüilidade
e liberdade haverá na mente. É muito simples, embora, como meu primeiro
professor, Anagarika Munindra, sempre dizia:”Não é fácil”. Prestar atenção é
algo que temos de praticar.
I.M: Agora, enquanto conversamos, você está com a atenção plena na
impermanência?
JG: Obviamente, a maioria das pessoas, e eu me incluo, não vive
continuamente num estado de constante atenção plena na impermanência. Mas
nós podemos ter a experiência dessa verdade muitas vezes todos os dias.
Mesmo agora, podemos perguntar, “Onde ficou o início da nossa conversa?
Onde ficou a experiência que tivemos quando pusemos a fita no gravador?” Já
desapareceram. A experiência se mantém fluindo e mudando o tempo todo e o
que estava aqui há trinta segundos atrás, já não está mais aqui,. Acho isso
realmente um pouco mágico, um pouco misterioso ter essa consciência. Eu faço
isso sempre que me lembro. Não é necessário nenhum tipo especial de estado
mental e está sempre acessível.
Uma imagem que gosto de usar é a de estar num cinema e ser totalmente
envolvido pela trama da estória. Então, de repente nos lembramos que estamos
assistindo a um filme e naquele momento a magia é quebrada. Essa é uma boa
analogia de como vivemos, com frequência : estamos completamente perdidos
num filme, mas nada substancialmente importante está realmente acontecendo.
I.M: Algumas pessoas chamariam a sua afirmação de muito niilista. Você está
dizendo que nada está acontecendo aqui realmente?
JG: Quando digo que nada realmente está acontecendo, quero dizer que
aquilo que está acontecendo não é o que pensamos. Um exemplo comum utilizado
na literatura buddhista é o de um sonho. O sonho está realmente acontecendo?
Bem, está acontecendo realmente como um sonho. Nossa delusão é que nós não
sabemos que é um sonho, então somos agarrados pela situação. Podemos fazer
da nossa realidade um sonho lúcido? Quando prestamos atenção à
impermanência, isso nos ajuda a acordar. Podemos também falar em termos de
níveis absolutos e relativos de realidade e da união dos dois. Podemos estar
totalmente engajados no nível relativo e ainda ter uma compreensão da
perspectiva absoluta, da qual vemos a natureza impermanente dos fenômenos.
Só então, poderemos estar engajados na experiência sem fixação e sem
delusão. Ver a impermanência não implica numa falta de empatia ou falta de
vínculo. De fato, com a consciência da impermanência existe muito menos uma
noção de eu e outro, então uma pessoa pode se sentir ligada num nível mais
profundo. Se não estivermos identificados com nenhum aspecto da experiência,
incluindo a mente que sabe, então o que fica é a compreensão da
inter-relação básica, o um nascido do zero. Kalu Rinpoche expressou isso tão
claramente quando disse: “Nós vivemos na ilusão da aparência das coisas.
Existe uma realidade. Nós somos essa realidade. Quando entendemos isso,
vemos que não somos nada. E sendo nada, nós somos tudo. Isso é tudo”
I.M: A verdade da impermanência está se tornando bastante aparente para a
grande maioria de membros da sangha ocidental que está entrando nos anos e
notando a impermanência nos cabelos, dentes e na força dos músculos. Quais
são as suas reflexões a respeito do processo de envelhecimento?
JG: Acho que ver a impermanência do corpo pode levar a uma das duas
direções. Obviamente, podemos sentir muito desconforto sobre a natureza
decadente da nossa carne e ossos, o que significa que ao mesmo tempo estamos
identificados com o nosso corpo. Se nos vemos sensíveis ao nosso
envelhecimento, isso revela onde estamos presos o que pode ser de grande
ajuda no nosso processo de nos soltarmos disso. Mas se observarmos nossa
impermanência física com a compreensão de que o corpo é desprovido de um
eu, que ele é uma combinação de elementos básicos, então ver sua natureza
deteriorante pode ser libertadora. Tem sido de grande ajuda para mim,
lembrar que a mudança não é um erro. É assim que as coisas são. Portanto, ao
experimentar o envelhecimento do corpo, meu mantra se transformou em: “É
assim que as coisas são. Emaho! (Que incrível!)
Nota: Entrevista de Joseph Goldstein para o Inquiring Mind – edição Outono 2000.