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Facadas, discurso de ódio e o mergulho na doença social

Por uma sociedade mais pacífica


Facadas, prisões seletivas, discursos sobre metralhar militantes de partidos rivais, helicópteros com juízes e jatinhos de políticos caindo, colocar armas nas mãos das crianças, discurso violento discriminatório contra setores específicos, mulheres metralhadas em seus carros, mulheres jogadas de seus apartamentos, selvageria do agronegócio e do capitalismo, militarismo como solução, chacinas de índios, impunidade nos crimes, juízes comprados, egocêntricos e egoístas, mídia parcial e na mão de poderosos grupos financeiros possuidores de sua própria agenda, fakenews, crescente discurso religioso marcado por extremismo, fundamentalismo exclusivista baseado em ideias e crenças.

Tudo isso está conectado entre si e cada acontecimento não constitui um fato isolado. O estímulo de um reverbera em todos os outros. Cada parte colaborando para o caos, cada parte um exemplo do mesmo caos. Precisamos continuamente nos esforçar para ver esse todo de interconectividade negativa. É preciso compreender que a lastimável decadência de nossa sociedade vem dos pequenos e grandes atos que ocorrem em todas as esferas: política, social, econômica, familiar, individual.

Na Índia, o importantíssimo conceito de Ahimsa traz a letra inicial “a” indicando a negativa da raiz “hiṃs”, que significa “bater”. Não bater, não causar dano, não agir pelo ódio, atitudes que podem ser sintetizadas pelo termo consagrado de “não violência”. Estamos imersos na violência em todos os níveis, por todas as partes.

Num país historicamente cristão, “Ame seus inimigos, faça o bem àqueles que lhe odeiam, abençoe aqueles que lhe amaldiçoam, ore por aqueles que lhe tratam mal” (Lucas 6:27-28) é uma mensagem progressivamente ausente do discurso social. Com o crescente cristofascismo de grupos que distorcem a mensagem de Jesus para jogá-lo na bancada de vendedores e compradores de ilusões, é urgente que os verdadeiros cristãos de nosso país reocupem a plataforma moral que combate a violência em todas as formas e se lembrem das palavras de Mateus: “Coloquem suas espadas de volta ao seu lugar… pois aqueles que puxam a espada morrerão pela espada” (26:52).

Quanto mais a população cristã permitir que oportunistas e aproveitadores usurpem a mensagem de paz e de vida de Jesus, mais essa omissão resultará numa sociedade moldada pelo ódio, pela discriminação, pela arma em punho como símbolo de “força divina”, uma visão arcaica tão distante daquilo que Mateus recordou como sendo dito pelo homem de Nazaré: “Abençoados os pacificadores, pois eles serão chamados filhos de Deus” (5:9).

E como não deixar de lembrar um dos mais belos discursos contemporâneos sobre engajamento social e político, nas palavras do pastor da Igreja Batista, Martin Luther King, Jr.: “Para nossos oponentes mais ferrenhos, nós dizemos: ‘Equipararemos sua capacidade de infligir sofrimento com nossa capacidade de aguentar o sofrimento. Equipararemos sua força física com a força de alma. Faça conosco o que quiser, e nós continuaremos lhe amando’” (“Loving your Enemies” em Strength to Love).

No buddhismo é dito que a não violência deve ser uma prática em três níveis. Pelo nosso comportamento evitaremos causar dano, prejudicar, enganar, molestar, ferir. Em vez de colocar armas nas mãos de nossos filhos e lhes ensinarmos a metralharem aqueles de quem não gostamos, colocaremos pipas, bolas e lápis de cor, para que possam pintar seus sonhos e fazer voar suas esperanças e inocência. E os adultos se comportarão como adultos maduros, ao invés de transformar os negócios em competição, a mídia em esperteza para enganar, e o sistema judiciário numa piada.

No segundo nível, não apenas pelo comportamento, mas também pelo uso da linguagem poderemos construir um mundo onde as pessoas se tratem com respeito, mesmo diante daqueles que expressam ideias contrárias. O discurso de ódio que visa o ataque da pessoa ao contrário do ataque às ideias muito facilmente se expande para todos os lados e num momento já estamos vivendo numa comunidade de selvagens que se julgam espertos, gritando uns com os outros. “Não é pelo ódio que o ódio cessa, mas pelo não ódio”, disse o Buddha. 

Finalmente, no terceiro nível, a não violência deve ser praticada internamente, pela meditação, pelo pensamento crítico e reflexivo, e pela cuidadosa introspecção constante em relação aos pensamentos e motivações. O caminho para a paz, bem como a estrada para a destruição, começa pela mente. Nossos pensamentos se transformam em atitudes, que se transformam em hábitos, que se transformam em preconceito, violência, menosprezo, arrogância e toda a gama de vícios que hoje vemos cada vez mais sendo elogiados. Tomemos o caminho contrário. E isso começa dentro de nós.

No hinduísmo, em uma das mais antigas de suas escrituras, o Chāndogya Upaniṣad (CU 3.17.4), ahimsa figura como uma das cinco virtudes fundamentais. Aderência à verdade, sinceridade, caridade e esforço dedicado à prática espiritual, completando o grupo. Uma sociedade saudável deve valorizar a verdade e enojar-se em relação à enganação no comércio, na política, na mídia, no judiciário, a um ponto que aqueles que maculam a verdade e a sinceridade sintam-se envergonhados de praticarem seus atos prejudiciais à clara luz do dia como hoje vemos ocorrer no país. Generosidade deve ser estimulada como virtude social, aprendermos que dar (de nossos recursos materiais, emocionais, logísticos e intelectuais) colabora para a felicidade de todos e numa sociedade mais feliz você também será mais feliz. E não nos esqueçamos de criar mais e mais oportunidades de conscientização, em que o valor pela ciência, pela cultura ancestral da humanidade, pela ética, pelas dimensões mais superiores da vida não seja relegado apenas a grupos místicos ou mesmo esquizotéricos, mas valores comuns e acessíveis a todos.

Sempre a maior responsabilidade é daqueles que estão em comando. Os que dirigem politicamente a nação em todas as suas esferas. Os que decidem a justiça e sua aplicação. Os donos de empresas de mídia, conglomerados financeiros, cadeias de produção e revenda, diretores de instituições, pais dentro de uma casa. Cada um de nós exerce algum cargo de comando em relação a alguém ou a algo, e cada um também é subalterno e recipiente passivo. Isso significa que cada um tem seu papel, grande ou pequeno, a contribuir para uma sociedade mais pacífica e saudável ou caótica e opressora. É a escolha de cada um.

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