por Buddhistdoor Global
“Ande sozinho, como um rinoceronte” aconselha o Sūtra do Rinoceronte, uma das primeiras escrituras buddhistas. Os pratyekabuddhas (seres iluminados que alcançam a libertação sem a ajuda de um mentor) da pré-história podem ter trilhado seus caminhos sozinhos, mas, para a maioria de nós, vagar sozinho por muito tempo nos torna solitários. É natural sentir assim de vez em quando. Mas, se a solidão começar a sufocar nossa sensação de estarmos ligados aos outros ou a minar nossa esperança de pertencimento, sabemos que se tornou uma doença existencial. Pode ser que nem todos que vão ler este artigo sejam religiosos, mas o pior tipo de solidão penetra profundamente em nosso âmago e nos faz perder o senso de significado e lugar no mundo, uma verdadeira preocupação espiritual.
Obviamente há uma diferença entre solidão e solitude. Todos nós precisamos de espaço para ficar a sós, para desfrutar da privacidade e para cuidar do nosso ser interior, e isso difere entre as pessoas. Muitas pessoas introvertidas, por exemplo, detestam ser empurradas para situações sociais que não sejam de suas escolhas ou que não tenham afinidade. Elas precisam de um tempo sozinhas para recarregar, preferem a companhia de alguns bons amigos e podem se sentir sozinhas ou isoladas quando cercadas por um mar de pessoas em uma festa. Pessoas extrovertidas se dão bem em situações sociais, mas muitas vezes se sentem solitárias e mais ansiosas quando não estão com pessoas. Podem até ficar sozinhas enquanto aparentemente têm inúmeras amizades que podem, na verdade, ser bastante superficiais. De fato, ignorar ou preencher nosso interior com muita interação e barulho é apenas outro caminho para a solidão.
Todo mundo já enfrentou a solidão em uma ou outra circunstância. Uma pessoa pode ter família ou amigos, mas que não entendem suas ideias e aspirações. Isso pode criar um isolamento de maneira frustrante. Quando sentimos que ninguém se importa, é como se tivéssemos sendo privados do contato e relações humanas, ou se não sentirmos compreendidos ou aceitos entre aqueles que estamos em contato, podemos começar a nos sentir presos e incapazes de procurar ajuda ou uma companhia para se relacionar.
O fato é que, uma vez que os sentimentos de isolamento se tornam um padrão regular, o bem-estar da pessoa cai drasticamente. Não é pequeno o número de pessoas, seja em economias desenvolvidas ou emergentes, que se sentem solitárias ou isoladas. A solidão é uma verdadeira pandemia emocional: em uma pesquisa, quase metade das pessoas nos EUA diz que “algumas vezes” ou “sempre” tem se sentindo sozinhas (46%) ou excluídas (47%). A solidão tornou-se uma preocupação tão grande na vida moderna que a Grã-Bretanha nomeou seu primeiro ministro da solidão, Tracey Couch. Couch disse ao HuffPost que, desde que assumiu o posto, encontrou alguns casos particulares que a comoveram.
Um deles foi de uma profissional que se mudou para Londres por causa de um bom emprego, mas sentiu-se “incrivelmente solitária, pois se levantava, ia trabalhar e quando voltava não tinha nada”. Também mencionou um de seus eleitores, um homem mais velho cuja esposa havia morrido anos atrás, que, embora se sentisse extremamente solitário, foi incapaz de articular essa solidão o suficiente para poder colocá-la em palavras: “O anúncio (de que ele estava se sentindo terrível pela perda de sua esposa) o ajudou a identificar que estava sozinho e que queria saber se havia algum projeto local em que pudesse se envolver” (HuffPost).
Não há dúvida de que certas ideias tradicionais sobre comunidade ou estilo de vida podem informar maneiras de aliviar a solidão, por exemplo, através de interação face a face, comunidades com causas ou interesses comuns e estar arraigado na luta vigente. Também é interessante notar que, apesar de a sociedade estar mais conectada do que nunca em um sentido digital, são as pessoas da geração do milênio que se sentem mais solitárias. Crouch diz: “Uma das possíveis causas da solidão, particularmente entre os jovens, é o advento da conectividade digital. Temos uma das gerações mais conectadas digitalmente e, no entanto, o que estamos vendo é um aumento na solidão”. Crouch também aponta que aplicativos e tecnologia móvel podem ser aproveitados para conectar pessoas solitárias, como é o caso de um serviço que conecta e facilita a comunicação entre mães jovens, que muitas vezes se sentem isoladas após o parto (HuffPost).
Embora haja regras muito gerais de como se deve lidar com a solidão, cada caso de isolamento é único e requer atenção personalizada. Algumas abordagens gerais incluem: compreender o contexto único em que a pessoa em questão está se sentindo sozinha – por exemplo, pode se sentir isolada pelas pessoas mais próximas – e tentar maneiras de romper seu isolamento, por exemplo, por meio de atividades que podem ajudá-la a se conectar com os outros ou com uma causa mais ampla, que esteja além dela mesma.
Alguém pode se sentir solitário distante de sua pátria ou em meio aos arranha-céus movimentados e bem iluminados de uma grande cidade. A solidão pode ser desencadeada de diferentes maneiras, desde uma eventualidade, como o retorno de um momento mais feliz ao local que amamos, até algo mais significativo, como a morte de um ente querido. A solidão pode durar vários meses ou uma vida inteira. Cada um tem suas próprias razões para se sentir como se sente. Avaliar a profundidade da solidão, seja o caso de tédio ou de uma ferida psicológica, cabe a uma pessoa de confiança.
Enfim, em todas essas situações, somos obrigados a considerar os melhores meios habilidosos (upaya) para abordar a solidão. Este é um assunto tão delicado quanto qualquer outro, para o sofredor, para seus amigos e seu capelão ou conselheiro. Engajar na solidão é se envolver com um aspecto verdadeiramente cru da condição humana: a aversão de estar sozinho. Para sacerdotes buddhistas, um importante objetivo é ajudar o sujeito a ver a vida de um ponto de vista diferente; especificamente, quão profundamente interconectado esse sujeito realmente está com o universo. Com a percepção existencial de que nunca estamos sozinhos, esperamos alcançar os outros com o coração aberto e livre do medo do isolamento.
Thich Nhat Hanh expressa isso em uma de suas memórias sobre sua mãe: “Caminhando lentamente ao luar através das filas de plantas de chá, notei que minha mãe ainda estava comigo. Ela era a luz do luar me acariciando, como tinha feito tantas vezes, muito carinhosa, muito doce. . . maravilhosa! Cada vez que meus pés tocavam a terra, eu sabia que minha mãe estava lá comigo. . . Daquele momento em diante, a ideia de que eu havia perdido minha mãe não existia mais. Tudo o que eu tinha que fazer era olhar para a palma da minha mão, sentir a brisa no meu rosto ou a terra sob os meus pés para lembrar que minha mãe estava sempre comigo, disponível a qualquer momento”. (Thich Nhat Hanh)
Referências:
Hanh, Thich Nhat. 2002. No Death, No Fear: Comforting Wisdom for Life. New York: Berkley Publishing Group.
Traduzido por Benedito Inácio da Silveira do Grupo de Tradução do Centro Nalanda
do original ‘Loneliness as a Spiritual Concern and Ailment’ em acordo com os editores
Para Distribuição Gratuita© 2018 Edições Nalanda
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