por Buddhistdoor Global
Política sempre foi parte da vida das pessoas, mas hoje sua relevância parece mais pronunciada quando comparada com os relativamente calmos fins dos anos 90 e começo dos anos 2000. As razões são variadas: a tecnologia e as mídias sociais aproximaram o mundo e tornaram mais fácil aprender sobre importantes eventos ao redor do mundo e compreender seu significado. Além disso, há um inacreditável nível de insatisfação com a política convencional em grande parte do Ocidente, resultado de uma série de eventos sísmicos – a volátil presidência de Trump, Brexit, e o crescimento da direita populista na Europa [*Embora os partidos populistas na Holanda e na França tenham perdido as eleições, eles ganharam muito terreno e, com as eleições chegando à Alemanha, espera-se que a direita populista ganhe ainda mais.] são apenas algumas das manifestações de profunda impaciência (e mesmo de desespero) com a miríade de problemas sociais, econômicos e políticos da sociedade ocidental atual.
O equívoco de que o buddhismo evita política não é apenas incorreto mas priva o mundo da oportunidade de refletir como os valores buddhistas podem contribuir na abordagem dos grandes problemas políticos da era – idealmente de forma apartidária. Neste momento de grande insatisfação (conhecido pelos buddhistas como sofrimento/dukkha, num sentido mais existencial), os buddhistas têm o que podemos chamar de “oportunidade bodhisattva” para ver como os insights encontrados no vasto cânone da literatura buddhista podem ajudar as pessoas a se envolverem na política. Isso não quer dizer que todos precisam aderir a uma causa ativista ou participar de uma manifestação. Nem é negar que o buddhismo é, em sentido último, além da política. Mas essas advertências não impedem os buddhistas de pensar “politicamente”.
Se olharmos para as tendências políticas do mundo ocidental, parece imediatamente aparente que, para muitas pessoas, as expectativas não estão sendo atendidas. Embora não possamos enumerá-las de forma abrangente, o que podemos ter certeza é que, no início deste milênio, poucos previram a crise financeira global e seus efeitos: o aumento da desigualdade (econômica) e o aumento do desemprego e do sub-emprego. Enquanto as pessoas no fim do século 20 geralmente se sentiam confiantes sobre seu futuro, a inabilidade dos governos ocidentais em resolver decisivamente questões como a crise econômica e suas consequências, a imigração ou o terrorismo – juntamente com uma série de desventuras no Oriente Médio desde 2001, dividiram opiniões no Ocidente e drenaram as já escassas economias nacionais – levando a um crescente sentimento de ameaça existencial. Esse medo fundamental e insatisfação levaram ao ponto onde muitas pessoas em países de economia desenvolvida sintam que seus líderes são incapazes de minimizar as lacunas entre suas expectativas e a situação atual.
É claro que as políticas instituídas pelos políticos ocidentais muitas vezes não ajudaram ou contribuíram ativamente para esse mal-estar. A elevação das taxas de ensino no Reino Unido, as desventuras de George W. Bush no Oriente Médio, a desregulamentação dos bancos sob Bill Clinton nos anos 90 – é possível elaborar uma lista completa de crises relacionadas a políticas que são prováveis culpados pelo senso generalizado de insatisfação ou dukkha político que vemos hoje no Ocidente.
A Segunda Nobre Verdade é clara a respeito da causa de dukkha: é o desejo, ou apego (tanhā), que segundo a doutrina buddhista leva aos repetidos ciclos de morte e renascimento em nosso mundo convencional de saṁsāra. O Buddha falou de quatro coisas às quais normalmente nos apegamos: prazeres sensoriais (que incluem resistir a experiências desagradáveis), noção/senso de si, opiniões, rotinas e rituais.
Há um paralelo fascinante aqui com o apego dogmático à ideologia política, que apenas leva a mais divisão partidária e uma incapacidade de fazer concessões. Pelo menos nos EUA, parece que as linhas divisórias – desde filiação partidária a questões sociais como a homossexualidade ou o controle de armas – nunca foram mais acentuadas. Os cristãos fundamentalistas não têm espaço para compromissos com os secularistas ateus. Os conservadores hardcore veem os socialistas democratas como comunistas, enquanto grande parte da Hollywood liberal e rica parece não entender que a vitória eleitoral de Trump foi um grito de raiva (talvez inepto e deslocado, mas mesmo assim uma verdadeira fúria) contra “o establishment”. Em níveis básicos, as pessoas estão começando a enxergar através dessa divisão, e o sucesso de um não-político como Trump foi um repúdio aos velhos modos. Mas isso ainda deve resultar em uma recalibração dos partidos republicanos e democratas profundamente entrincheirados.
Na política há questões éticas interessantes no sentido de até que ponto devemos nos ater aos próprios princípios e até que ponto devemos fazer concessões. Um apego feroz aos princípios pode levar a dogmas completamente cegos sobre, digamos, tributação, regulamentação governamental ou questões incendiárias, como o aborto. No entanto, se um partido ou um político se entregar apenas a fazer concessões, pode-se concluir que não há mais nenhuma escolha real ou política orientada por valores, um sentimento que tem se espalhado pelo Ocidente. O desejo é construído com base na ignorância, a causa-raiz do sofrimento. Ignorância é uma noção multifacetada que, no fundo, significa simplesmente que não vemos as coisas como elas são, e estamos muito perdidos em nossas próprias neuroses, ilusões e projeções para entender o mundo de uma maneira mais clara.
A principal distinção entre uma abordagem não-buddhista e uma buddhista a respeito da política é que esta última parte do princípio do não-apego. Em um comentário anterior, propusemos que o ativismo social (e, por extensão, a ação política e o pensamento) tem apenas um impacto limitado sobre os problemas existenciais do mundo. E muitos ativistas apaixonados em outros tempos admitem que isso pode levar ao esgotamento, à amargura e a um sentimento geral de desamparo. Devemos nos basear no viável, mesmo quando visamos o ideal. Praticar o não-apego em tais situações poderia nos ensinar como abandonar as batalhas perdidas e como fazer as pazes com aqueles com diferentes opiniões políticas. Não importa quão divergente seja nosso posicionamento político, todos estamos nos debatendo no mesmo mar de renascimento e sofrimento.
O buddhismo é uma religião transcendental e a prioridade de qualquer praticante é ver através do ilusório véu deste mundo e atingir o insight. No entanto, os discípulos do Buddha devem estar conscientes do fato de que os indivíduos não existem no vácuo. Falamos muito sobre mindfulness individual, mas talvez o clima político atual no Ocidente seja um momento propício para os buddhistas discutirem a mindfulness “pública”.
Tudo isso nos leva à Terceira Nobre Verdade; a garantia de uma solução para dukkha. Isso nos mostra o caminho para a Quarta Nobre Verdade do Nobre Caminho Óctuplo – um modo de vida universal que é bem adequado para a política de insatisfação atual… mas dada sua complexidade, esta será uma discussão para outra ocasião.
Traduzido por Patrícia Siqueira do Grupo de Tradução do Centro Nalanda
do original ‘Politics as Public Mindfulness—Engaging with Dissatisfaction and Non-attachment’ em acordo com os editores
Para Distribuição Gratuita© 2018 Edições Nalanda
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