~ um excerto de uma palestra do Ven. Jen-Chun aos monges da Ganlun Buddhist Academy, Jiu-Hua Shan, a Montanha Sagrada do Bodhisattva Kṣitigarbha, China –26 de outubro de 2002
O Buddhismo precisa da Sangha para propagar o Dharma. Assim é que o Dharma pode ser transmitido ao mundo. Enquanto praticantes monásticos vocês têm a responsabilidade de treinarem a si mesmos a fim e se tornarem exemplos valorosos do Dharma.
Para cumprir tal responsabilidade, no início de nosso treinamento devemos manter duas atitudes. A primeira é um senso de dever e respeito ético; a outra é a grande compaixão.
O senso de vergonha e temor moral neutralizam as duas contaminações mais fundamentais: a ganância e a ignorância. O senso de vergonha neutraliza a ganância ou o desejo; o temor moral combate a ignorância. Essas duas contaminações são as causas que levam os seres sencientes a transmigrarem no saṁsāra, o ciclo de nascimento e morte. Se tiverem um grande senso de vergonha, serão capazes de extirpar a ganância ou desejo. Se tiverem um grande senso de temor moral, serão capazes de extirpar a ignorância.
Como é que o pudor e o receio moral neutralizam os dois obstáculos raízes? Quando aprendemos o Dharma encontramos o princípio correto do não-eu. O apego ao eu sustenta todos os obstáculos. Quando damos lugar à noção do eu, ao mesmo tempo damos lugar ao apego, ignorância, vaidade, arrogância e todos os outros obstáculos relacionados. Através do despertar de um grande pudor ou vergonha e temor moral, podemos erradicar a raiz subjacente de todos os obstáculos: a ideia de um eu. Conseguir isto, contudo, não é fácil. Precisamos de forte determinação e perspicácia. Quando estas duas se juntam, a combinação da determinação e da perspicácia capacita-nos a subjugar o eu e os obstáculos que surgem dele.
A maioria das pessoas vê o seu eu como a sua fortaleza, a “fortaleza do ego”. Por exemplo, pensam: “eu posso viver na minha própria casa” ou em “meu próprio mosteiro”. Isto é a fortaleza do “eu próprio” para a qual posso sempre me virar em busca de proteção. Este modo de pensar é um erro. Para praticar Buddhismo de uma forma correta precisamos acabar com a ideia da fortaleza do eu. Assim, seremos capazes de ver tudo claramente com o olho do Dharma. Então, tanto um monge como uma pessoa normal precisa de grande determinação e astúcia para destruir a fortaleza do eu. Tornar este o nosso objetivo é dar o primeiro passo na verdadeira prática do Dharma. Mas se não pretendermos destruir a fortaleza do eu, por muito Dharma que aprendamos, estaremos apenas a “arranhar” a superfície.
Tendo uma grande vergonha, subjugue o ‘eu’ com astúcia e extrema determinação. Instantaneamente controle a mente presunçosa, instantaneamente ilumine o Dharma. Use de grande compaixão para elevar as pessoas, aja com coragem extrema. Por meio de uma aspiração profunda e de um grande compromisso, manifeste profundamente o Buddha.
Então, quais são as medidas que deverão ser utilizadas para destruir a fortaleza do eu? A primeira é subjugar de imediato a mente de presunção. A mente dos seres humanos tem tendência para ser muito presunçosa. Alguns laicos, com apenas um superficial conhecimento mundano, pensam que são grandes sábios. Alguns monges que adquiriram um pequeno conhecimento do Dharma tornam-se arrogantes e pensam que são verdadeiros mestres do Dharma. Deste modo, com elevadas ideias a respeito deles próprios, tornam-se obcecados pela presunção. Mas aquele que tem grandes ideias a respeito de si mesmo não consegue elevar-se. Quando se tem uma grande opinião de si próprio, acaba-se por cair um dia e não mais conseguir erguer-se. Um verdadeiro praticante deverá esmagar imediatamente a mente de presunção assim que esta se manifeste. Se conseguirmos pôr de lado o eu e entrar em harmonia com o Dharma, então em toda a parte e a qualquer momento, mesmo em vidas futuras, seremos capazes de exercer uma influência grande e positiva.
Agora, como pessoas comuns, não podemos esperar atingir o despertar instantâneo. Atualmente, muitas pessoas falam sobre “iluminação instantânea e realização do estado de Buddha” ou “iluminação instantânea e visão da verdadeira natureza”. Não é tão fácil assim. A “prática instantânea” de que eu falo significa os meios para instantaneamente subjugar o conceito de eu em cada pensamento que surge na mente. “Instantaneamente” significa “imediatamente”, sem dar ao conceito de eu qualquer margem para se desenvolver e prosperar.
Qual é a segunda medida necessária para destruir o “eu”? É “iluminar instantaneamente o Dharma”, ou seja, brilhar através dos dharmas (fenômenos) e fazer brilhar a luz do Dharma. Na frase “brilhar através dos dharmas”, a palavra “dharma” refere-se aos cinco agregados: forma, sensação, percepção, formações volitivas e consciência. Esses são os dharmas mundanos ou fenômenos do nascimento e da morte. Nos sūtras é dito: “Quando dharmas surgem, o sofrimento surge. Quando dharmas cessam, o sofrimento cessa”. Isto é, quando os fenômenos dos cinco agregados surgem, todo o sofrimento surge. Da mesma forma, quando os fenômenos dos cinco agregados cessam, todo o sofrimento cessa. Esses cinco agregados devem ser entendidos com a sabedoria do Dharma, como impermanentes e desprovidos de existência intrínseca. Isso é iluminar o dharmas mundanos, os fenômenos do nascimento e da morte.
A frase “iluminar o Dharma” significa também fazer brilhar a luz do Dharma. Isso diz respeito ao Dharma transcendental: o Dharma supremo, o Dharma além do eu, o Dharma do Nirvāṇa.
Assim, as duas medidas usadas para destruir a fortaleza do eu são: subjugar instantaneamente a mente conceitual e iluminar o Dharma correto através do entendimento da impermanência, da dimensão do não-eu e do Nirvāṇa.
Quando, com um grande senso de vergonha e temor moral, alguém restringe o eu, uma grande compaixão interior pode surgir. O que é uma grande compaixão? É o desejo de erguer pessoas em sofrimento e engano. A maioria das pessoas está confusa e enganada. Nós devemos ajudá-las a se erguer de sua confusão e sofrimento. Entretanto, não é fácil exercitar tal habilidade. Para se preparar para verdadeira e efetivamente erguer os outros, na vida diária, devemos persistentemente aprender e praticar a sabedoria e compaixão dos Buddhas e bodhisattvas. No início, devemos aprofundar e fortalecer nosso objetivo. Devemos aprender através do bodhisattva Kṣitigarbha, aquele que fez a grande e ampla promessa: “Eu não atingirei o estado de Buddha até que os infernos estejam vazios”. Através de tal resolução, nós estaremos fazendo um grande compromisso, um compromisso que funcionará como um chicote para fortalecer e aguçar nosso esforço.
À medida que se persiste em tais práticas durante um longo tempo, chegar-se-á, afinal, a ver, de uma maneira profunda, o que faz do Buddha o Iluminado. O Buddha teve a sabedoria de erradicar o eu e teve grande compaixão para se dedicar totalmente ao bem-estar de todos. Por meio de fortes aspirações e grande empenho, a pessoa será capaz de manifestar profundamente o Buddha em todas as suas ações e pensamentos.