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O caso dos monges suicidas do Tibete – 3

Com o tempo, cada uma dessas formas deu lugar à formação de escolas específicas no meio buddhista. As reações a elas também não tardaram a ocorrer. Uma corrente distincionista enfatizou a discriminação precisa de todos os dharmas e de suas intrincadas e dinâmicas relações, demonstrando assim o vazio na interdependência (posição adotada pela escola Theravada). Uma outra corrente posterior também reagiu por meio da ênfase na doutrina em si do Vazio, principalmente como uma forma de se contrapor às posições realistas que adquiriam um número crescente de adeptos. Essa corrente veio a ser conhecida como Sunyavada.

Como todo remédio que quando usado além de seu propósito (nesse caso, a correção de um desequilíbrio), pode se tornar ele mesmo um elemento de desequilíbrio, o Sunyavada original gerou em sua continuidade também uma forma excessiva que começou a beirar o nihilismo. Ao afirmar o Vazio de forma excessiva, esta corrente em particular acabou por negar a validade da realidade convencional, destituir a existência de qualquer significado, e se aproximar perigosamente da antiga doutrina Ucchedavada (niilista) que o Buddha já em sua época criticava como extremamente perigosa. O Sunyavada extremista perdeu a lembrança do Sunyavada original enquanto expediente medicamentoso, idealizou o Vazio, e deu a este uma “existência independente”. Este tipo extremista de noção do Vazio foi provavelmente aquele criticado pelo mestre Theravada do século V, Buddhaghosa, sob o nome de ‘mahasuññavadas’; e também pelo mestre Madhyamika chinês Seng-chao, também no mesmo século, quando disse que as formas são vazias porque não têm uma existência independente, mas também o vazio não tem esse tipo de existência. Os sunyavadas extremistas ignoraram a afirmação do Vimalakirtinirdesha sūtra, uma outra obra mahayana, de que “os dharmas não são nem ser nem nada; todos os dharmas têm origem em causas e condições”, que é, ademais, a posição clássica do Theravada.

A posição sunyavada extremista, a qual se encontra em várias reverberações até nossos dias, cria uma série de novas posturas e problemas éticos. Ética, preceitos, convenções, tudo passa a poder ser quebrado, pois são uma ilusão no final das contas. Se este tipo de vazio é magnificado e todos os dharmas são em última análise um nada ou uma ilusão, então o ato de matar, como já expresso de diferentes formas no código guerreiro de alguns, não consiste nada mais que um passar a lâmina da espada em meio a átomos vazios. Matar um outro ou matar a si mesmo passam a ser atos que não precisam ser interpretados como portando qualquer significado ético (não são um karma nem têm consequências), pois não há realmente um ser ‘lá’ que possa ser morto. Os seres são ilusões, conglomerados vazios que podem ser destruídos, divididos, separados. Este mesmo tipo de pensamento, tão apropriado para fins militares, também foi utilizado no manual kshatriya da realeza hindu, o Bhagavad Gita, onde Krshna é apresentado como instruindo Arjuna a não desistir da batalha pelos mesmos motivos. Essa mesma concepção animou também os samurais e soldados japoneses, os quais se sentiram à vontade para se manter em suas atividades ao mesmo tempo que preservando suas crenças buddhistas.

O monge que tira sua própria vida não precisa considerar que está quebrando um preceito da própria religião. A visão (extremada) do Vazio, garante que não há forma, ou que toda forma é vazia. E isso pode permitir, pelo menos em sua mente, uma atenuação da ação de ir contra o primeiro preceito de não tirar a vida.

Este artigo continuará…

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