Ao som de Katie Melua ~ estava passando uma entrevista dessa cantora no voo TG305 da Thai Airways rumo a Yangon ~ o sono bateu depois de dois dias de voos contínuos. O voo de pouco mais de uma hora foi tranquilo e lá embaixo foi possível ter uma visão do famoso rio Irrawardy enquanto preparávamos para descer. Eram pouco mais de 7 horas da noite e faziam 35 graus celsius quando pousamos em Yangon. Imaginem a temperatura ao meio-dia! Três monges e eu já estávamos sendo esperados por uma comitiva de representantes e fomos imediatamente encaminhados para uma sala bem confortável até que nossos passaportes fossem liberados e trazidos até nós.
O dia seguinte começa da forma ideal (não que eu não tente imitar na devida escala quando de volta ao lar) às 5h30 da manhã para um café da manhã composto de macarrão, vegetais, sopa de arroz, pão, geléia, frutas, ovos, etc. Há uma coisa que os birmaneses não toleram: um prato vazio à frente de seus convidados. Nem bem o prato apresente um esboço de que está se esvaziando duas ou três pessoas já se aproximam para enchê-lo. Pratinhos e cumbuquinhas vão se acumulando e aconchegando-se (melhor dizendo, espremendo-se) à nossa frente. Por aqui há um costume curioso, que já me lembrava das vezes passadas, em todas as refeições é servido sempre café e chá. Costuma-se tomar ambos, por mais estranho que isso pareça à primeira vista.
Num passeio às 6h30 da manhã pelas ruas, o calor já se faz sentir a ponto de gotejar. Saudades daquele hazelnut coffee frappé da tarde anterior! E tão logo bate as 10h30 da manhã já é hora do almoço! Opções vegetarianas e não vegetarianas das mais variadas. Mas onde está o queijo e o café expresso?
Uma coisa que sempre me vem à mente quando em visita a um mosteiro é o agradecimento aos monges e ao estilo de vida monástico. No mesmo lugar onde tomei o hazelnut coffee frappé no dia anterior havia, pelo menos, mais uma dúzia de opções de bebidas, para não falar dos doces, muffins, tortas e salgados. Mas no mosteiro comemos o que nos é oferecido. Não que a comida aqui não seja boa, pelo contrário, é deliciosa! Mas ela é o que é. Não podemos dizer que hoje preferimos requeijão ao invés de manteiga ou croissant no lugar da sopa de arroz. As escolhas que temos são de comer ou não comer. Então optamos pelo ‘sim’, satisfeitos por ter o que comer, agradecidos pela generosa oferenda, felizes por termos essa oportunidade. A vida monástica nos estimula a pensar assim, e é bom, muito bom para a mentecoração.
Isso me faz lembrar da Katie (aquela do início desta folha). Nascida na Georgia (não dos Estados Unidos, mas da Europa) ela disse na entrevista que teve uma infância com várias privações (lembremos do leste europeu pós-comunismo), mas que não era consciente disso até se mudar para a Grã-Bretanha com sua opulência e variedade. Acostumamo-nos muito rapidamente a ter escolhas demais e começamos a querer isso e aquilo exatamente conforme nosso desejo. Em pouco tempo já ficamos insatisfeitos com tudo o que temos, pois sempre vemos uma falta, uma detalhe que poderia e ‘deveria’ ser diferente. Queremos isso e aquilo e queremos de uma forma exata e precisa. Queremos ovos, mas eles têm de ser fritos na manteiga, com a gema dura e servidos na temperatura e acompanhamentos corretos. Do contrário, reclamamos e, para alguns, o dia já foi estragado.
Não é assim com nossa vida? Constantemente o mundo nos oferece opções, muitas delas deliciosas e inesperadas. Mas a mente traiçoeira e mal acostumada já começa a procurar senões, faltas, impedimentos. Não, nem tudo é perfeito, se por perfeito queremos dizer ter tudo conforme os mínimos detalhes de nossa imaginação desejosa. Mas esta refeição aqui em frente é perfeita em sua singularidade, única naquilo que nos proporciona neste momento, completa em sua capacidade de preencher a mente que repousa no presente. Então, você topa estar aqui, nesta vida, com o cardápio que é ofertado neste momento? Ou tentará moldá-lo desejando ter mais opções do que as oferecidas, sofrendo, reclamando e, com isso, não vivendo? Porque são essas, sempre, as opções que temos, escolher viver ou escolher não viver; e ficarmos felizes seja qual for a opção escolhida.
É por isso que só se vê o real nivel de desenvolvimento de uma pessoa quando ela sofre privações ou tem lucros excessivos.
Obrigada pelas suas palavras.
Mais uma vez não só consegue partilhar connosco o que está a viver, mas ao mesmo tempo trazer-nos à realidade como o toque do sino.
Bem-haja, professor.
Tudo de bom por aí, até breve!
Isto me remete, Dhanapala, a algo constante na vida de quem tem filhos pequenos hoje. Há muito mais opções de tudo: comidas, roupas, brinquedos… Se temos a boa fortuna de sermos pais capazes de oferecer um leque razoável destas opções para os infantes, é fácil ver que eles estão sempre muito mais bravos pelo que não tem do que felizes por aquilo que puderam ter…
E à boa fortuna nos cabe tornar proveitosa ou um desastre em suas vidas!
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