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Pisando no passado

Dias atrás…

Se eu fosse começar minha vida profissional de novo, arqueologia na Índia certamente seria uma a ser claramente considerada. Andar aqui é pisar (e quero significar literalmente ‘pisar’) constantemente em remanescentes passados. Note-se, por exemplo, Nalanda. Até meados de 1800, ninguém sabia onde era, e sua existência estava circunscrita aos suttas e comentários antigos e as descrições dos peregrinos chineses e indianos de séculos atrás. Aí um tal de Buchanan chegou por aqui e notou que dentro do perímetro de alguns vilarejos se encontrava uma quantidade enorme de esculturas, tanques, restos de construções de tijolos e pensou: “Ah, isso deve ter alguma importância!”. Mas o povo da região, hindus, disseram para ele que aquilo era o remanescente de uma cidade chamada Kundilapura, famosa na tradição purânica como sendo a capital do rei Bhimaka de Vidarbha, que foi o pai de Rukmini, esposa de Krshna. Ja os jainistas da região disseram a ele que aquilo era a capital do rei Srenika, a cidade de Pompapuri. E a coisa ficou por isso. Anos depois, em 1847, Kittoe também levado pelas tradições locais identificou o lugar novamente como a antiga Kundilapura. Foi somente em 1861 que o famoso arqueólogo Cunningham, descobrindo inscrições no próprio local que o identificava como a antiga e famosa Nalanda, começou a trazer atenção ao local. Somente 10 anos depois escavações sistemáticas começaram e o que encontraram foi surpreendente. Centenas de artefatos e as ruínas de uma grande stupa estavam lá, completamente enterradas sob a terra.
De repente, o mais importante centro de ensino dos tempos antigos havia sido descoberto. Lugar de nascimento de Sariputta, um dos grandes discípulos do Buddha, e segundo este, aquele que mais compreendia o Dhamma após o próprio Bem-Aventurado, Nalanda foi, por séculos, reverenciada por todas as escolas buddhistas. Numa conferencia em Nalanda em 2006, testemunhei o Dalai Lama dizer que todas as manhas ele se voltava para a direção onde estava Nalanda e fazia uma reverencia, pois toda a tradição buddhista tibetana devia sua existência a Nalanda. O historiador indiano Taranatha afirma que Asoka construiu uma stupa aqui para marcar o local do parinirvana de Sariputta, que Nagarjuna estudou em Nalanda e se tornou mais tarde seu abade. Mas foi mesmo no quinto século que Nalanda se ergue para a fama, gozando do patrocínio de reis por varias gerações. Com o rei Harsha de Karnauj (600-647), ele mesmo buddhista, Nalanda chegou a contar com 100 vilarejos a sua disposicao para prover alimento e recursos para seus alunos. É nessa época que o famoso peregrino chinês Hsuan-tsang a visita e estuda por la, provendo uma rica descrição de seu funcionamento. Quando da visita de I-tsing, um outro importante peregrino chinês, em 673, Nalanda já contava com 200 vilarejos para seu sustento e três mil alunos faziam seus estudos integrais por lá. Durante toda a dinastia Pala (do século 8 ao 12) Nalanda contou com ativo suporte real.

Recentemente se descobriu que a parte escavada de Nalanda representa apenas talvez 1/16 do que foi Nalanda. Nesses dias pudemos visitar vários lugares ao redor. Passamos pelo local onde se realizou o primeiro concilio; o provável local do concilio alternativo ao segundo, realizado pelos mahasanghikas; o local onde se acredita que Sariputta nasceu; e o que provavelmente se constitui a entrada norte de Nalanda original, numa fascinante maratona por entre vilarejos, conversas com aldeões, investigações arqueológicas e descobertas de estatuas claramente de buddhas e bodhisattvas, os quais são cultuados pela população hindu como sendo de deuses e guardiões. Vemos Manjusri e Mahamaya cercados de grinaldas e emanando o cheiro de oferendas de leite e incenso, protegidos por zelosos brahmanas inconscientes de seu real significado, quase como indicando que a sabedoria (manjusri) e a mãe dos buddhas (mahamaya) podem estar escondidos nos lugares em que menos se espera, mas que basta um olhar sabedor para revelar sua real natureza.

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