Umas das coisas interessantes no trabalho de tradução é observar os vários estágios pelos quais uma tradução pode passar. Num conhecido verso do Buddha temos: “ko nu haso kimanando niccam pajjalite sati andhakarena onaddha padipam na gavesattha“, onde a segunda frase literalmente significa algo como “está ardendo continuamente“. Duas traduções para o português, no entanto, apresentam interessantes diferenças. Em uma, a frase é traduzida como “está tomado pelo fogo das paixões“, enquanto a outra é expressa como “está devastado pelos tormentos“.
Qual o caminho para tais diferenças ocorrerem? Podemos pensar que a ideia de arder ou queimar expressa pelo verbo ‘pajjalati’ facilmente evoca a ideia de ‘fogo’. Ora, os comentários tradicionais em relação a esse verso dizem que aquilo que arde indica o papel das paixões. O tradutor, desejoso de incorporar o máximo possível dos esclarecimentos dados pelo comentário, pode desejar inclui-lo na tradução, resultando no “está tomado pelo fogo das paixões”. Apesar de ser esclarecedor, acredito que esse grau de explicação incorporado na própria tradução retira uma certa poesia e alusão simbólica das palavras, explicando em excesso, e retirando do leitor seu papel de interpretador, algo que irá ocorrer subsequentemente nas duas linhas seguintes. Um segundo tradutor, então, influenciado pela ideia de que aquilo de que se trata é o fogo das paixões, facilmente poderá interpretar que paixões são tormentos, e como se trata aqui de fogo, a palavra que no original implica em ‘continuamente’ acaba se transformando em ‘devastado’, algo natural no tocante ao fogo. Chegamos, então, a “está devastado pelos tormentos”.
De forma semelhante, diversas partes das escrituras vão se transformando nas mãos dos tradutores que, em seu zelo excessivo ou simples desconhecimento, acabam escolhendo a versão dos ensinamentos que o leitor deverá ler.