À medida que observamos chocados os eventos em Virginia Tech, não podemos evitar uma reflexão sobre os rumos da educação moderna e o papel da mídia. Nos primeiros dias após o trágico evento, todas as notícias se centraram na carnificina e em questões sobre se a polícia e a administração da universidade deveriam ou não ter respondido com mais rapidez ao ataque. Nenhuma reflexão sobre o atirador em si, sua situação psicológica e a “cultura” por trás de tudo, que faz com que esses tipos de massacres em escolas estejam se tornando tão comuns nos EUA.
Somente dias depois, quando o video enviado pelo próprio atirador foi recebido, é que as coisas começaram a mudar um pouco. É claro, todo país tem seus próprios problemas com a violência. É por isso que se torna tão necessário pensar sobre cada um individualmente. No caso dos EUA, um estudante de classe média que sai por aí atirando em seus colegas e professores está se tornando lamentavelmente parte da cultura americana, da mesma forma que podemos dizer dos turistas sendo atacados e roubados no Rio de Janeiro e das pessoas se auto-explodindo em Israel. O que está errado nas escolas americanas? O que está errado em nossas escolas? Quais os valores básicos e que “espírito” permea o ambiente educacional atual?
Ter fé ou possuir um espírito religioso implica em nutrir um contato com a realidade (realidade da impermanência, do sofrimento, da morte), e num nível ainda mais alto, compará-lo com os ideais supremos. Esta é a força fundamental que pode inspirar os homens.
Mas que ideais têm sido ensinados quando, como bem diz David Brazier: “Em nossa sociedade somos constantemente inundados pelas imagens de saúde, beleza e bem-estar que são expostos como ideais desejáveis nas propagandas e filmes“?
“A meio caminho da sala de aula, ouvimos sons. Alguém disse algo como: ‘Isso é provavelmente apenas construção’” (Time)
É difícil evitar de pensar que, de fato, isso foi somente mais um exemplo de apenas construção: a construção de nossas vidas, construções de mente e corpo, construções de dor, frustração, morte e sofrimento.
Obrigado Ana, pelo Texto do Calligaris e pela mênção do livro “Silêncio e Contemplação – Uma Introdução a Plotino” de Gabriela Bal. A autora é uma velha amiga. Gostei muito do texto, que novamente nos faz pensar sobre as incongruências de nossa sociedade.
Olá Ricardo,
Depois de sermos bombardeados com tantas analises pré-fabricadas, mas que na maioria fogem ao âmago
da questão. Penso que essa aqui complementa e amplia a sua.
CONTARDO CALLIGARIS
Sobre o atirador de Virginia Tech
A procura de explicação revela mais sobre nós do que sobre o objeto de nossas investigações
1) SOU uma pessoa razoavelmente sociável. Dispenso e retribuo sorrisos e banalidades (“Oi”, “Tudo bem?”) nos elevadores, nos vestíbulos e mesmo na rua.
Mas há pessoas para quem o exercício dessa socialidade “básica” é forçado ou intoleravelmente hipócrita. Para um amigo monge beneditino, o uso da linguagem é permitido só quando a gente tem algo a dizer que seja crucial para o destino da alma: o silêncio lhe parece quase sempre mais próximo da verdade do que a falação (sobre a virtude do silêncio, aliás, acaba de sair “Silêncio e Contemplação – Uma Introdução a Plotino”, de Gabriela Bal).
Pois bem, desde o massacre de Virginia Tech, leio e escuto que o atirador era taciturno e silencioso, não devolvia saudações nem olhares. Conclui-se que ele era uma pessoa “anti-social”.
É normal: quando acontece um horror, dormimos melhor com uma explicação. Mas, freqüentemente, a procura das explicações revela mais sobre nós mesmos do que sobre o objeto de nossa investigação. No caso, a explicação pelo caráter taciturno do atirador revela sobretudo que somos tão preocupados com nossa agressividade que preferimos afogá-la num rio de palavras vazias. Quem se cala nos perturba porque seu silêncio evoca tudo o que nós mesmos tentamos esconder atrás de nossa barulhenta “cordialidade” (inquietudes, medos, raivas, lubricidade etc.).
Ora, quando a “sociabilidade” é um jogo obrigatório, quem não joga está fora, é um excluído. E, numa sociedade que valoriza a inclusão, econômica ou convivial, a exclusão é sempre explosiva.
2) Alguns comentadores entenderam que o atirador produziu e tornou público um vídeo para tornar-se uma “celebrity” após a morte. Por isso, segundo eles, as imagens não deveriam ser mostradas pela televisão. De novo, a “explicação” é uma projeção de nossa própria paixão pelos “cinco minutos de fama”: atribuímos ao atirador uma vontade da qual nos envergonhamos.
De fato, ele me pareceu sobretudo preocupado em declarar que se orgulhava de seu ato. Mais um desaforo? Não sei: nas culturas orientais (veja-se o clássico de Ruth Benedict, “O Crisântemo e a Espada”, Perspectiva), a vergonha é o grande regulador social; e o melhor remédio contra a vergonha é o orgulho.
3) O atirador evocou o “exemplo” de Cristo. Loucura? Em termos. Max Weber (em “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, Companhia das Letras ou Martin Claret) mostrou que o sucesso econômico do protestantismo (nos EUA, por exemplo) se deveu à idéia de que os predestinados à salvação eterna seriam também os eleitos na vida terrena: o sucesso é bom e demonstra que Deus nos ama.
Essa idéia estimula o crescimento, mas gera inevitavelmente, no “perdedor”, o anseio de uma revanche já neste mundo, uma revanche para provar que a graça divina não o esqueceu.
4) Em 1996, eu ensinava a patologia das migrações na Universidade da Califórnia em Berkeley. A chegada de um estudante coreano ou chinês no departamento de antropologia era uma raridade. Em geral, os imigrantes orientais não falam nem aprendem inglês, o que torna problemática, para seus filhos, a escolha de uma disciplina humanística; as carreiras científicas são o caminho mais rápido de integração.
O atirador de Virginia Tech (cujos pais não falam inglês) estava estudando literatura inglesa. O conflito entre sua origem e sua vontade de se integrar devia ser dramaticamente agudo.
5) A primeira reação, nos EUA, foi o protesto contra a facilidade de adquirir armas. Mas, para o lobby das armas, o evento prova o contrário: se cada aluno pudesse carregar sua arma (com a naturalidade com a qual a gente carrega um celular), um atirador mataria só um ou dois, antes de cair numa chuva de balas.
6) Mais importante: naquela manhã fria, um professor, Liviu Librescu, 76 anos, judeu de origem romena, sobrevivente do genocídio, não hesitou em dar a vida para impedir que o assassino entrasse na sala de aula. Com isso, ele permitiu que vários estudantes se salvassem. Somos fascinados pelas “razões” que levam alguém a cometer um horror. Por exemplo, há estantes de livros tentando entender por que alemães comuns se tornaram, durante o nazismo, assassinos. Seríamos justos com nossa espécie se, às vezes, colocássemos a pergunta inversa: como é possível que, no horror, quase sempre haja alguém que faz a coisa certa?
abs,
ana
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