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Jazz na Mercedes-Benz

Estariam enganados aqueles que pensam que só em seitas desconhecidas e grupos “buddhistas” heterodoxos se encontra aquele tipo de confusão que é querida para o Pai Ambrósio. O que se entende por caminho espiritual ou religiosidade (ou qualquer outra palavra que se deseje empregar) parece ter uma estranha atração para um certo tipo de mentalidade, por vezes ‘peculiar’, outras vezes oportunista, ainda outras simplesmente ‘ingênua’ ou obtusa. Religiões são vividas por pessoas, e como há confusões, excentricidades e enganos na política, na sociedade, na família, etc., também no ambiente religioso ocorre o mesmo, e não somente da parte de quem o frequenta, mas de quem o dirige. O Buddhismo não é uma exceção à regra, mesmo em lugares que esperaríamos uma certa ortodoxia (ao contrário das seitas e grupos não-filiados). Monges chineses praticando kungfu em mosteiros tipo Shaolin a fim de atrair turistas e provar que a China agora é pró-buddhista e democrática (enquanto massacra o Tibet), escândalos regulares envolvendo sexo, dinheiro e poder que viraram lugar comum na sangha thailandesa, monges japoneses voltando tontos de bêbados tarde da noite para o mosteiro, os exemplos se multiplicam…

Nessa semana duas notícias estão nas manchetes. Monges japoneses do Shingon, com a explicação de que o templo está vazio e é preciso levar o Buddhismo a outros lugares, aparecem uma vez por mês num clube de jazz. Lá, em meio a uma platéia de fumantes e bebedores de cerveja, cantam sutras buddhistas. É o dharma se tornando artigo de consumo. É “arte”, alguns diriam.

No outro extremo da Ásia, a outra notícia (que está em todos os jornais do Sri Lanka nessa semana) vem do muito controverso partido político fundado por monges theravada. Seu líder, o monge Medhananda , seguindo uma permissão por lei, que permite advogados e monges comprarem bens estrangeiros com um pagamento mínimo das usualmente altíssimas taxas, comprou um luxuoso E-220 luxury Mercedes Benz e é agora acusado de vender a Mercedes com um lucro altíssimo (até nos lembra as Mercedes do Osho Rajneesh, não?). Enfim, esse partido de monges, que é pró-ativo na defesa da primazia do povo singhalês – e portanto, contra o processo de diálogo com a minoria tâmil, e mesmo a favor da luta armada – é sujeito a mais uma onda de críticas, dentre muitas, e agora o monge é jocosamente referido como aquele que dirige uma Mercedes-Benz na estrada do caminho óctuplo.

A seus críticos no Parlamento do Sri Lanka, o monge Medhanada cita o Vasala Sutta (verso 134), que diz que “Ele que critica um iluminado, seus discípulos, aqueles que abandonam o lar ou um chefe de família, é um sem casta (pária)”. Com isso, o monge Medhananda contrapõe todos aqueles que levantam qualquer crítica a ele e a seu partido. Obviamente uma distorção dos ensinamentos buddhistas, e esquecendo as freqüentes advertências do Buddha de que “Aquele que veste o manto laranja sem estar livre das impurezas, que é falto de autocontrole e sinceridade, não é merecedor do mando laranja” (tal como aparece no Dhammapada 9), esta atitude pretenciosa é infelizmente sustentada pelo mundo por devotos pios e fundamentalistas, sempre prontos para idolatrarem a persona de seus ayatolás, lamas, pastores e senseis, ao invés de serem, isto sim, devotos dos ensinamentos em si. Por vezes os resultados são leves e inconsequentes, apenas criando mentes incapazes de pensarem por si mesmas e beatas repetidoras; outras vezes simplesmente criam uma perda do precioso tempo dos praticantes; outras ainda causam consequências irreparáveis, como no caso do vajra-regente, sucessor de um importante mestre tibetano, o qual provou-se ter conscientemente passado Aids para dezenas de devotos e devotas com os quais compartilhava relações íntimas. Sua explicação, surpreendente quando analisada de fora, mas compreensível quando se conhece o ambiente de quase-idolatria cercando alguns lamas no Buddhismo Tibetano, foi a de que acreditava possuir meios extraordinários de proteção!

Nada disso testemunha contra o Buddhismo em si, assim como os inúmeros escândalos de padres, pastores e sacerdotes de outras religiões não testemunham contra suas religiões. Como foi dito logo no início, religiões são vividas por pessoas, e estas são falhas. O que isso tudo fala para nós, entretanto, é um testemunho de como a fé cega, acoplada à falta de conhecimento real das doutrinas mais ortodoxas dessas religiões, pode ser um instrumento de confusão e dano, psicológico e físico. O fundamentalismo da interpretação da letra, a idolatria a personalidades, a crença em poderes ‘especiais’ dos mestres e a diminuição do valor das regras éticas a favor do culto (sem fundamento escritural) da infabilidade monástica ou de professores religiosos, são algumas das feridas profundas que se alastram na comunidade buddhista e religiosa em geral. Tais feridas e outras na política, na justiça, no sistema social, familiar, etc., nem é necessário realçar…

Marcações:

6 comentários em “Jazz na Mercedes-Benz”

  1. Eu não posso me chamar de Budista ainda, estou estudando. Mas penso que o maior erro desses monges é uma interpretação errada do “Caminho do Meio”. Neste conceito, nada é errado em si mesmo, o que devemos fazer é escolher o caminho que não nos destrua. Por vez essa flexibilidade nos leva a pensar que podemos nos controlar em qualquer situação. O Fato de monges visitarem Clubes de Jazz em si mesmo, penso eu, não é grave. Mas com certeza esta prática, quando frequente, será prejudicial visto que os atrativos da vida desregrada passarão a se tornar dominantes aos olhos, ouvidos e por fim à mente.

  2. No meu entender, tais acontecimentos no âmbito religioso têm sua origem numa única raíz. A partir dela arboram também a corrupção política, roubo, crimes, etc, etc e etc. Enfim, tudo que visa a satisfação pessoal em detrimento dos direitos dos outros. Para mim, essa raíz é o próprio egoísmo.

    Acho ainda, que este egoísmo é cultivado em nossa sociedade de um maneira como nunca fora antes. Sei que isso soa até meio clichê, afinal, sempre culpam nossa decadente sociedade atual. Creio que não posso evitá-lo…

    Hoje as pessoas cultuam outras pessoas, todo mundo quer ser um artista de cinema, um executivo de sucesso com um zilhão de pós graduações, um “big brother”…

    Some a isto, o consumismo desemfreado – a tendência de transformar tudo em um produto, a sensação contagiosa de que não há sentido para a nossa existência….

    Enfim… É um assunto muito, muito, muito complexo e longo para tratar num comentário de um blog. 😉

  3. O conformismo foi o caminho que a nossa sociedade escolheu para trilhar. Nada melhor que delegar a responsabilidade de tudo que acontece para um ser que nada tem a ver conosco, nada melhor que desejar algo que você queira muito para um outro ser que não somos nós.
    Quando estamos de frente para o mar e vemos aquele horizonte infinito, nosso olhar não finda. O mesmo acontece quando fechamos os olhos, o olhar não finda em nosso ser, algo tão misterioso quanto o Oceano (e até muito mais!).
    O que sabemos sobre nós mesmos é muito pouco, por isso é muito mais fácil culpar outros pelo que acontece e pode acontecer conosco.
    O caminho para nos conhecermos pode ser extremamente árduo, principalmente na sociedade moderna, que centra sua cultura no(s) (seres) exterior(es).

  4. Será que o exemplo de alguns pastores evangélicos brasileiros está se espalhando?

  5. Será que por isso o Buddha nos deixou a instrução para que sejamos nosso próprio refúgio? Penso que seja por isso também…
    Todo o caminho Buddhista nos orienta a tomarmos as rédeas de nossa própria salvação, mas nós insistimos em buscá-la fora de nós, transfirimos a responsabilidade, desviamos o olhar, esperamos que nos curem por que curarmo-nos a nós mesmos pode implicar em olhar dentro de um abismo profundo e temerário… e se temos a opção de delegar esta missão a um mestre, porque sofrer, não é mesmo?

  6. Penso que os exemplos de conduta que nos chegam atraves de pais ambrosios, medhanadas e muitos lideres influentes confusos em geral são alertas uteis para realmente estarmos cientes de que tambem temos esse mesmo potencial para nos deixarmos seduzir pelas vias faceis que são colocadas a nossa disposição. Se tais pessoas com algum destaque ainda que efemero, conseguem atingir tanta gente, é porque lhes foram outorgados poderes para isso. Para mim casos do genero reforçam a atualidade e importancia do Kalama Sutta e do esforco correto para fortalecimento da atenção plena

    Sidney

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