A pobreza é tanto uma escolha política quanto moral

por Ven. Bhikkhu Bodhi

O relato das Nações Unidas sobre a Pobreza Extrema relata que “o Sonho Norte-Americano está rapidamente se tornando a Ilusão Norte-Americana”. Não é tempo de se acordar, descartar tanto os sonhos quanto as ilusões, e agir com base na verdade?

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Com seus pertences, uma mulher caminha pelas ruas de Manhattan, Nova York em 14 de dezembro de 2017. Conforme o Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano americano, a população sem-teto aumentou em torno de 4% em 2017, enquanto o número de pessoas nessa condição, em todo o país, cresceu a aproximadamente 553 mil.

Os Estados Unidos se consideram uma nação excepcional, o farol da liberdade e da justiça para o mundo. Na imaginação popular, é a terra da abundância onde todos podem prosperar, a terra da oportunidade onde qualquer um que trabalhe duro o suficiente pode realizar os sonhos do coração. Mas é assim mesmo ou apenas uma ilusão reconfortante?

No outono do ano passado, o professor Philip Alston, Relator Especial das Nações Unidas sobre Assuntos Relativos à Extrema Pobreza e Direitos Humanos, se propôs a passar duas semanas viajando pelos Estados Unidos para avaliar a situação de extrema pobreza no país e como isso afeta os direitos humanos dos americanos. Suas viagens o levaram à Califórnia, Alabama, Geórgia, Virgínia Ocidental, Washington, D.C., e Porto Rico. Seu relatório, publicado em meados de dezembro pelo Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, revela as ilusões que esse país cultiva sobre si mesmo e expõe a verdade espantosa sobre a situação atual e o futuro dos Estados Unidos. Embora a extensão da pobreza e da desigualdade de renda nos Estados Unidos já tenha sido documentada em diversas outras ocasiões no passado, não deixa de ser revelador que o Relator Especial das Nações Unidas sobre Assuntos Relativos à Extrema Pobreza tenha escolhido, dentre todos os países, os Estados Unidos para conduzir sua investigação e tenha demonstrado que esse país difere muito dos outros países economicamente avançados.

Os estudos anteriores mostraram que, juntamente com suas conquistas de riqueza e tecnologia, os EUA também se destacam pelos níveis extremos de desigualdade econômica. Cerca de 40 milhões de pessoas – 12,7% da população – vivem na pobreza; quase metade destes, 18 milhões, em pobreza profunda, com renda familiar abaixo da metade da linha de pobreza. As taxas de mortalidade infantil nos EUA estão entre as mais altas do mundo desenvolvido. Os norte-americanos vivem vidas mais curtas e com mais doenças do que as pessoas em outras democracias afluentes. Um estudo publicado pela Universidade de Stanford revela que, em escalas que medem a pobreza, provisões de segurança social, desigualdade de riqueza e mobilidade econômica, os EUA são os últimos entre os dez países mais ricos e o décimo oitavo entre os 21 mais importantes. Contudo, a falta de recursos financeiros não é a fonte do problema, pois os EUA gastam mais na defesa nacional do que os próximos sete países combinados. O país também possui os maiores gastos em saúde e a maior taxa de encarceramento.

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Os voluntários servem o almoço de Ação de Graças para os sem-teto fora da Missão de Los Angeles na região do Skid Row da cidade durante o evento anual em Los Angeles, Califórnia, em 25 de novembro de 2015.

Alston ressalta que a pobreza tornou-se tão difundida nos EUA porque as sucessivas administrações se recusaram a reconhecer que os direitos econômicos e sociais são plenos direitos humanos. O direito internacional afirma que todos têm direito a uma qualidade de vida adequada, incluindo serviços de saúde, alimentação, escolaridade e proteção social em momentos de necessidade. Embora esses direitos sejam frequentemente pisoteados por regimes mais repressivos, dentre as democracias economicamente desenvolvidas os EUA estão praticamente sozinhos em desprezá-los flagrantemente. Isso se destaca na medida em que permite que seus cidadãos sofram de insegurança alimentar, ausência de serviços de saúde acessíveis e falta de habitação adequada. Devido a cortes nos serviços básicos, a pobreza tornou-se uma armadilha – uma armadilha na qual qualquer pessoa pode cair, e da qual é extremamente difícil escapar. Assim, de acordo com Alston: “O Sonho Americano está rapidamente se tornando a Ilusão Americana, já que os EUA têm a menor taxa de mobilidade social de qualquer um dos países ricos”.

Políticas contrárias aos pobres são, de acordo com o relatório, inspiradas por “narrativas caricatas sobre as supostas diferenças inatas entre o rico e o pobre”. O rico é retratado como trabalhador e responsável, o pobre como desleixado, perdedor, trapaceador. Esse quadro é endossado por políticos a fim de justificar cortes em fundos para programas que sustentam as necessidades básicas dos pobres produzindo buracos em muito uma já maltratada rede de segurança. Por trás dessa estratégia, Alstom observa, está escondida uma agenda racista que sugere, como insinuação, que os pobres que estão exaurindo os recursos do país são os imigrantes afro-americanos ou hispânicos. Porém, embora a pobreza seja proporcionalmente maior entre esses grupos raciais, a realidade é que a maioria dos pobres são brancos.

Talvez as estatísticas mais chocantes citadas por Alston sejam aquelas sobre a extensão da pobreza entre as crianças americanas. Em 2016, 18% das crianças – que é quase uma a cada cinco – estavam vivendo na pobreza, com as crianças constituindo um terço de todas as pessoas na pobreza. Cerca de 21% das pessoas sem teto são crianças. A pobreza também é distribuída desigualmente de acordo com o gênero, com as mulheres ficando com o fardo mais pesado. Os cortes em serviços sociais aumenta o fardo das mulheres, com um impacto negativo correspondente em seus filhos. Em 1995 menos de 100.000 crianças em casas de mãe solteira viviam em pobreza extrema. Em 2002 o número era mais de 700.000. Alston indica que “legislaturas predominantemente formadas por homens raramente prestam qualquer atenção para essa consequência do corte de benefícios sociais por elas impostas”.

No seu relatório, Alston chama a atenção para os fundamentos políticos da pobreza nos EUA. A persistência da pobreza extrema, afirma ele, não é causada por fatores impessoais para além do nosso controle, mas decorre de “uma escolha política feita por aqueles que estão no poder”; e já que é assim, “com vontade política, poderia ser prontamente eliminada”. Ele explora em detalhe as medidas que devem ser adotadas para eliminar a pobreza, entre as quais se destaca o compromisso com uma genuína tomada de decisão democrática.

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Ativistas protestam a respeito do projeto de lei do GOP sobre a reforma das taxas, fora do escritório do republicano Dana Rohrabacher (R-CA) em Capitol Hill, 5 de dezembro de 2017 em Washington, DC.

Hoje nos Estados Unidos, escreve Alston, a democracia está sendo corroída de maneira sistemática e constante por políticas como a imposição  de estritos requerimentos com relação à identidade dos eleitores, a privação dos direitos civis dos criminosos, o papel privilegiado do dinheiro nas eleições e o crescimento ameaçador de outras medidas que privam as pessoas pobres, especialmente as minorias, de seus direitos de voto. Mas o fracasso de sucessivas administrações em prover soluções efetivas para a pobreza também mina a participação democrática. Como um oficial estadual de West Virginia disse a Alston: “Quando as pessoas são pobres, elas apenas abandonam o sistema eleitoral”. Isto, sugere Alston, poderia ser a razão para as elites políticas estarem predispostas a manter o povo na pobreza.

Alston preparou seu relatório enquanto o Congresso, controlado pelos republicanos, se preparava para forçar a aprovação de seu extenso programa de “reforma tributária”. O plano, tal como promulgado, é um prêmio para as grandes corporações e para os ricos. Ele reduz drasticamente a alíquota do imposto corporativo de 35% para 21% e entrega a fatia do leão de seus benefícios individuais aos ultra ricos. De acordo com uma análise do apartidário Instituto  de Tributação e Política Econômica, “em 2019 mais da metade (dos benefícios) vai escoar para os 5% dos contribuintes mais ricos, e mais de um quarto fluirá para os 1% mais ricos”. Em 2027, “a porção de americanos enfrentando  aumento de impostos seria muito maior, e a alteração média para os três quintos inferiores seria de aumento de impostos”.

Alson observa que esse pacote “aposta na tentativa dos EUA de se tornar a sociedade mais desigual do mundo, e aumentará grandemente os níveis já elevados de riqueza e desigualdade de renda entre os 1% mais ricos e os 50% mais pobres dos americanos”. Agora que o pacote foi aprovado ao longo de uma votação alinhada do partido podemos esperar para ver os níveis de aumento da desigualdade ainda maiores. Além disso, como o déficit explode em mais de um trilhão de dólares por causa dos enormes cortes de impostos, a campanha contra os pobres provavelmente se tornará ainda mais devastadora. Como Alston observa: “cortes dramáticos no bem-estar, prefigurados pelo Presidente e Orador Ryan, e já começando a ser implementados pela administração, irão essencialmente destruir as dimensões cruciais de uma rede de segurança que já está cheia de buracos”. É até provável que o Medicare e a Previdência Social – rotulados erroneamente de “programas de direitos” – serão levados para enfrentar o pelotão de fuzilamento.

Embora o futuro em curto prazo possa parecer sombrio, o relatório estabelece termos claros e simples de medidas políticas que necessitam ser adotadas para reverter evidentes desigualdades de riqueza e renda. Talvez o que o relatório não afirma tão explicitamente quanto poderia é a paródia moral de permitir tal pobreza extrema existir em meio à imensa riqueza. Decisões políticas fluem a partir de compromissos morais e, assim, as decisões que produzem e sustentam a pobreza, tais como estabelecidas por representantes eleitos, refletem uma crise na moralidade pública. Aprovar políticas que enriquecem a elite corporativa e financeira minando o bem-estar econômico e social das pessoas comuns mostra que o compasso moral dos líderes de nosso país se desviou.

Por essa razão, uma mudança redentora na direção que tomamos irá requerer que nossos líderes considerem mais inteligentemente as implicações morais de suas políticas. É certo tornar os Estados Unidos em um país no qual um punhado de bilionários têm mais dinheiro do que sabem o que fazer com ele, enquanto crianças morrem devido a doenças facilmente tratáveis, mulheres trabalham em dois empregos apenas para alimentar seus filhos, estudantes universitários são inundados por desesperadores níveis de dívida e famílias inteiras vivem em abrigos na rua? Isso é o melhor que podemos fazer?

A necessidade imperativa agora é reverter a tendência para a desigualdade crescente – com todas as responsabilidade que isso demanda – e criar uma sociedade mais justa, equiparável e carinhosa. Com o sentido correto de consciência moral, e com escolhas políticas apropriadas, podemos criar uma ordem social em que ninguém precise viver à beira de um abismo, em que ninguém precise passar pelo intenso sofrimento e degradação pessoal trazidos pela pobreza.

Entretanto, uma vez que somos nós, o povo, que elege nossos representantes, nós também nos defrontamos com a necessidade de fazer escolhas corretas. Depende de nós decidir em que tipo de país queremos viver. Queremos viver em uma sociedade em que, em nome da “liberdade” – uma palavra-código para o livre comércio minimamente regulado – exibidores de extrema abundância para alguns e empurradores de outros para o fosso da pobreza? Ou queremos criar uma sociedade de prosperidade compartilhada, uma em que, em sua dedicação à justiça e liberdade para todos, assegura que todos possam florescer no melhor de suas capacidades?

Para escolher de maneira responsável devemos estar preparados para nos defrontar com as ilusões que têm nos levado por este caminho catastrófico. Isso pode ser doloroso, pois as ilusões usualmente nos dão um sentimento de conforto; mas, no final, abandoná-las é nossa melhor escolha, nossa única escolha para evitar um destino catastrófico. Precisaremos quebrar nosso vício pelos meios midiáticos sutilmente controlados pelos poderes dominantes, os quais propagam correntes de desinformação que alimentam nossos preconceitos e inflamam nossas emoções tóxicas. Precisaremos fazer um esforço para adquirir um entendimento mais preciso e verdadeiro das políticas que afetam nossas vidas, e precisaremos agir de maneiras que nutram nossos interesses genuínos e de longo prazo.

Também precisaremos descobrir que, longe de estarmos presos em uma competição brutal com os outros, estamos inevitavelmente interconectados com todos os demais, de modo que promover o bem de todos serve o nosso próprio bem. Para que façamos essa descoberta teremos de mudar o nosso coração, do egoísmo limitado para o interesse pelo bem comum, do ressentimento para a compaixão, da perspectiva constritiva da cupidez insaciável para um ponto de vista mais amplo que afirme a humanidade essencial de cada um. Sobre essa base seremos capazes de fazer escolhas sábias, as escolhas morais, que nos ajudarão a realizar juntos nossos ideais afirmados.

Uma versão anterior deste ensaio foi publicado em Common Dreams em 25 de dezembro de 2017.


Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
com a permissão do autor
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Este é o blog pessoal de Ricardo Sasaki, psicoterapeuta, palestrante e professor autorizado na tradição buddhista theravada (Upasaka Dhanapala) e mahayana (Ryuyo Sensei), tradutor, autor e editor de vários livros, com um grande interesse na promoção e desenvolvimento de meios hábeis que colaborem na diminuição real do sofrimento dos seres, principalmente aqueles inspirados nos ensinamentos do Buddha. Dirige o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda e escreve no blog Folhas no Caminho. É também um dos professores do Numi - Núcleo de Mindfulness para o qual escreve regularmente. Para perguntas sobre o buddhismo, estudos em grupo e sugestões para esta coluna, pode ser contactado aqui: biolinky.co/ricardosasaki

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