Deixe a água fluir naturalmente – cultivando a aceitação e reduzindo o preconceito

Por Buddhistdoor Global | 15 de setembro de 2018

de thriveglobal.com

Na última semana, a Suprema Corte da Índia descriminalizou relacionamentos homoafetivos de homens e mulheres. A corte decidiu que a seção 377, uma lei da época colonial que proibia certas expressões da sexualidade, desproporcionalmente aplicada a esses relacionamentos, não deveria estar na constituição. “Criminalizar o intercurso carnal é irracional, arbitrário e manifestamente inconstitucional”,  disse o  chefe de justiça Dipak Misra (BBC News).  Ativistas de toda a Índia celebraram a decisão, saudando-a como um potencial passo em direção a novos marcos legislativos e culturais que ajudariam a sociedade indiana a se tornar mais receptiva e menos preconceituosa.   

Devemos distinguir entre o cultivo interior de uma atitude mais ampla de não-julgamento e aceitação, e projetos políticos e sociais que buscam impor uma visão igualitária da sociedade. O que é considerado “aceitável” ou “convencional” e o que é “tabu” ou “fora dos limites” varia de acordo com o contexto social. Existem até contextos diferentes que coexistem na mesma região, cultura ou período de tempo. Por exemplo, a lei indiana em questão era uma lei da era colonial. As leis anti-gay nunca existiram no que antes era uma complexa confederação de domínios unidos pelo império mogol (isso não quer dizer que os mongóis apoiassem o casamento gay). No entanto, desde a década de 1960, a sociedade britânica tornou-se muito mais liberal e, em 2013, o governo de coalizão de Cameron-Clegg legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo e postumamente deu o perdão ao pioneiro da computação e decifrador de códigos Alan Turing (1912-1954). Cinco anos depois, a Índia demonstraria que lá também há um apetite (cultural) por uma resistência legislativa contra as tendências socialmente mais conservadoras da ideologia hindutva do partido BJP.

Não está claro se é a mudança nas crenças da sociedade que influencia a legislação, ou se é um ato legislativo que começa a mobilizar as mentalidades em direção a uma direção mais progressista. Embora os tribunais realmente forneçam um controle contra os impulsos preconceituosos da maioria, é a educação na tolerância e na abertura da mente que podem ajudar a moldar as atitudes da sociedade em uma direção positiva em relação às minorias. Os ideais de direitos naturais influenciados pelo Iluminismo, que também inspirou visões progressistas de religião, como o buddhismo engajado ou a teologia da libertação, entram em conflito com noções tradicionalistas ou conservadoras da lei natural, que segundo influentes pensadores conservadores como Edmund Burke (1729-97), resultaram da transmissão entre as gerações passadas e a presente (e, como tal, deve ser preservada e não desenraizada).

Muitas vezes, a lei natural tem pressuposições teológicas, e talvez seja semelhante à dominância cultural das castas (que é comumente associada ao pensamento hindu, mas remonta ao milenar Manusmriti) na Índia contemporânea. Para melhor ou pior, as castas provaram sua longevidade como um sistema que moldou a ordem social da civilização indiana por mil anos. O fato de que hoje é constitucionalmente ilegal discriminar com base na casta, e ainda assim grande parte da sociedade indiana continua a girar em torno de suas funções reguladoras e preconceitos, é indicativo de que os proponentes da igualdade legislativa e aqueles da lei natural devem idealmente acomodar-se e comprometer-se uns com os outros para que haja alguma mudança no status quo.

Reações à decisão da Suprema Corte da Índia. De chicagotribune.com.

Leis discriminatórias são frequentemente implementadas em nome da manutenção do modo “natural” das coisas: na Índia, o objetivo da seção 377 foi sempre punir “relações carnais contra a ordem da natureza com qualquer homem, mulher ou animal” (BBC News). E nos EUA, políticos republicanos conservadores cristãos e legisladores estão tentando reverter leis sobre o aborto  e o casamento gay, que é visto como antinatural.

O buddhismo tem dentro de sua filosofia, particularmente através do princípio do não-eu (anatta), todos os ingredientes para uma crítica radical e desconstrução do preconceito e presunções sobre o “estado natural” da pessoa humana. Também não possui a motivação teológica para certos tipos de discriminação. No entanto, sempre se ajustou às normas e leis sociais de qualquer sociedade em que se difundiu. E todas as sociedades têm seus preconceitos, alguns deles moldados pela cultura, filosofia e religião, ou tradições legais. Então, o que é natural? Se uma mente aberta que pode aceitar diferentes modos de ser é o que almejamos como compassiva e sábia, estaríamos nos desviando do que é natural, ou estaríamos nos alinhando com o modo de ser mais livre e mais aberto (natural)?

Talvez a “naturalidade” deva ser distinguida da aplicação político-cultural da “normatividade”, que engloba a sexualidade e até os papéis de gênero. A naturalidade é aberta, inclusiva e compreensiva. No sentido taoísta, não se busca a corretude nem se evita a não-corretude, porque fazer isso é cair na armadilha da dicotomia do justo-injusto ou do bem-mau. No entanto, a normatividade é algo bem diferente, exigindo uma imposição ativa ideológica, sociológica, política e cultural através da mídia, das leis do governo e dos corpos religioso e cívico.

No contexto do preconceito histórico contra a homossexualidade, a filosofia taoísta talvez veria a fixação da sociedade em impor a heteronormatividade como um desserviço ao complexo fenômeno da sexualidade humana. É como permitir que a água flua por seu curso natural; por que não deixar as pessoas simplesmente amarem? Por isso, entende-se o ato de amar, cuidar e fazer as coisas que seriam associadas ao amor em um relacionamento adulto mutuamente consentido.

Será que a pulsão de impor a corretude por si mesma planta as sementes do preconceito? Como podemos encontrar um equilíbrio entre a compreensão dos contextos culturais e permanecer fiel à abertura de nossas mentes? Desigualdades e preconceitos do passado precisam de um estado justo para serem corrigidas. A abertura interior do indivíduo, no entanto, só pode vir através do cultivo interior de tolerância e aceitação, da atenção vigilante aos nossos preconceitos e inclinações e examinar como e por que vemos as coisas como boas ou más. É talvez aplicando a herança desconstrucionista do buddhismo, juntamente com alguma ajuda das ideias taoístas de alinhamento com o fluxo natural das energias cósmicas do universo, que podemos alcançar um estado pessoal verdadeiramente natural de abertura.

Traduzido por Marcela França do Grupo de Tradução do Centro Nalanda
do original ‘
Let Water Flow Naturally—Cultivating Acceptance and Reducing Prejudice em acordo com os editores
Para Distribuição Gratuita© 2019 Edições Nalanda


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dhanapala

Este é o blog pessoal de Ricardo Sasaki, psicoterapeuta, palestrante e professor autorizado na tradição buddhista theravada (Upasaka Dhanapala) e mahayana (Ryuyo Sensei), tradutor, autor e editor de vários livros, com um grande interesse na promoção e desenvolvimento de meios hábeis que colaborem na diminuição real do sofrimento dos seres, principalmente aqueles inspirados nos ensinamentos do Buddha. Dirige o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda e escreve no blog Folhas no Caminho. É também um dos professores do Numi - Núcleo de Mindfulness para o qual escreve regularmente. Para perguntas sobre o buddhismo, estudos em grupo e sugestões para esta coluna, pode ser contactado aqui: biolinky.co/ricardosasaki

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