Como o Coronavírus pode controlar seu corpo (antes mesmo de você senti-lo)

foto: Dr. F.A. Murphy/Getty Images/Visuals Unlimited

por Jeff Wise

Você liga para um amigo e marca um encontro para o almoço. O clima está como uma primavera fora de hora, então você escolhe um lugar com assentos ao ar livre, o que parece ser mais seguro. Como de costume, você toma todas as precauções razoáveis: você usa desinfetante para as mãos, senta-se a uma boa distância de outros clientes, e tenta evitar tocar seu rosto, embora essa última parte seja difícil. Uma parte de você suspeita que tudo isso pode ser exagerado.

O que você não sabe é que dez dias atrás, o pai de seu amigo era convidado de seu parceiro de negócios no Clube Universitário, onde ele pegou o novo coronavírus da esposa de um especulador de criptomoedas. Três dias depois, ele tossiu em sua mão antes de abrir a porta de seu apartamento para receber seu filho em casa. A saliva dos pacientes COVID-19 pode abrigar meio trilhão de partículas de vírus por colher de chá, e uma tosse os espalha no ar em uma névoa difusa. Quando seu amigo entrou pela porta, ele respirou e 32.456 partículas de vírus se instalaram no forro de sua boca e garganta.

Os vírus se multiplicam dentro de seu corpo desde então. E enquanto ele fala, a passagem de sua respiração sobre o revestimento úmido de sua garganta cria pequenas gotas de muco com vírus que se movem invisivelmente no ar sobre sua mesa. Algumas se instalam no alimento ainda não comido em seu prato, algumas caem em seus dedos, outras são atraídos para seu seio nasal ou se instalam em sua garganta. Quando estender a mão para se despedir, seu corpo estará carregando 43.654 partículas de vírus. Quando acabarem de apertar as mãos, esse número chegará a 312.405.

Uma das gotículas é atraída para as passagens ramificadas de seus pulmões e se instala na superfície quente e úmida, depositando partículas de vírus no muco que reveste o tecido. Cada partícula é redonda e muito pequena; se você ampliasse um cabelo humano para que ele fosse tão largo quanto um campo de futebol, a partícula do vírus teria dez centímetros de diâmetro. A membrana externa do vírus consiste em uma camada oleosa incorporada com moléculas de proteínas irregulares chamadas proteínas spike. Estas se sobressaem como as protrusões como naquelas bolinhas protuberantes para cães mastigarem. No meio da partícula do vírus está um fio enrolado de RNA, o material genético do vírus. A carga explosiva.

À medida que o vírus atravessa o muco do pulmão, ele bate em uma das células que cobrem a superfície. A célula é consideravelmente maior que o vírus; na escala do campo de futebol, tem quase oito metros de diâmetro. Um bilhão de anos de evolução a equipou para resistir aos atacantes. Mas também tem uma vulnerabilidade — uma porta dos fundos. Destacando-se para fora desde sua superfície está um pedaço de proteína chamada enzima conversora de angiotensina 2, ou receptor ACE2. Normalmente, essa molécula desempenha um papel na modulação da atividade hormonal dentro do corpo. Hoje, ela vai servir de âncora para o coronavírus.

À medida que a proteína spike bate contra a superfície da célula pulmonar, a sua forma corresponde à da ACE2 de forma tão próxima que se adere a ela como um adesivo. A membrana do vírus se funde com a membrana da célula, derramando o conteúdo de RNA (ácido ribonucleico, ARN em português) no interior da célula pulmonar. O vírus está dentro.

O RNA viral trabalha rápido. A célula tem seu próprio material genético, DNA (ADN, em português: ácido desoxirribonucleico), que produz fragmentos copiados de si mesmo em forma de RNA. Estes são continuamente copiados e enviados para o corpo principal da célula, onde fornecem instruções sobre como construir as proteínas que desempenham todas as funções da célula. É como a oficina do Papai Noel, onde os elfos, atentamente construíndo os brinquedos segundo as instruções do Papai Noel, são complexos de RNA e proteínas chamados ribossomos.

Assim que o RNA viral encontra um ribossomo, esse ribossomo começa a lê-lo e a construir proteínas virais. Essas proteínas ajudam o RNA viral a se copiar, e essas cópias sequestram mais ribossomos da célula. Outras proteínas virais bloqueiam a célula de revidar. Logo o andamento normal da célula é completamente sobrecarregado pelas demandas do RNA viral, pois sua energia e maquinaria estão ocupados com a construção dos componentes de inúmeras réplicas de vírus.

À medida que são geridos, esses componentes são transferidos em uma espécie de correia transportadora celular em direção à superfície da célula. A membrana do vírus e as proteínas spike envolvem os fios de RNA, e uma nova partícula está pronta. Elas se juntam em bolhas internas, chamadas vesículas, que se movem para a superfície, explodem e liberam novas partículas de vírus em seu corpo em dezenas e centenas de milhares.

Enquanto isso, proteínas spike que não foram incorporadas a novos vírus incorporam-se diretamente na membrana da célula hospedeira, de modo a se prender à superfície de uma célula adjacente, como um navio pirata se amarrando a um navio mercante indefeso. As duas células se fundem, e uma série de RNA viral entra na nova célula hospedeira.

Por toda a parte superior e inferior de seus pulmões, garganta e boca, a cena é repetida constantemente quando célula após célula é penetrada e sequestrada. Assumindo que o vírus se comporte como seu parente, SARS, cada geração de infecção leva cerca de um dia e pode multiplicar o vírus em um milhão de vezes. Os vírus replicados se derramam no muco, invadem a corrente sanguínea e se derramam pelo sistema digestivo.

Você não sente nada disso. Na verdade, você ainda se sente totalmente bem. Se você tem alguma reclamação, é tédio. Você tem sido um cidadão obediente, ficando em casa para praticar distanciamento social, e depois de dois dias de assistindo a franquia Velozes e Furiosos, você decide que sua saúde mental está em risco se você não sair.

Você liga para uma ex, e ela concorda em encontrá-lo para um passeio ao longo do rio. Você espera que o zeitgeist do fim do mundo possa acender alguma imprudência à tarde, mas a máscara facial que ela está usando mata a vibe. Ela também disse que decidiu morar com um cara que conheceu no Landmark. Você nem sabia que ela gostava do Landmark. Ela te dá um abraço caloroso quando você diz adeus, e você diz a ela que foi ótimo vê-la, mas você sai se sentindo desanimado. O que ela não sabe é que uma hora antes, você foi ao banheiro e esqueceu de lavar as mãos depois. As partículas fecais invisíveis que você deixa no braço da jaqueta dela contém 893.405 partículas de vírus. 47 segundos depois de chegar em casa, ela vai pendurar o casaco e esfregar uma coceira na base do nariz antes de lavar as mãos. Nesse momento, 9.404 partículas virais serão transferidas para o rosto dela. Em cinco dias, uma ambulância a levará ao Hospital Monte Sinai.

Como uma cadeia de varejo devorada por um fundo de investimento, separada em partes, e deixada para morrer, suas células infectadas vomitam partículas de vírus até se queimarem e expirarem. Enquanto fragmentos de células desintegradas se espalham pela corrente sanguínea, seu sistema imunológico finalmente sente que algo está errado. Os glóbulos brancos detectam os fragmentos de células mortas e liberam produtos químicos chamados citocinas que servem como um sinal de alarme, ativando outras partes do sistema imunológico para entrar em ação. Ao responder, elas identificam uma célula que se tornou infectada, elas atacam e a destroem. Dentro do seu corpo, uma Batalha do Somme (sangrenta batalha travada durante Primeira Guerra Mundial) em escala microscópica está a se travar com o seu sistema imunitário a disparar seus grandes canhões  nas trincheiras inimigas e nas suas próprias tropas. À medida que a carnificina aumenta, a temperatura do corpo aumenta e a área infectada fica inflamada.

Dois dias depois, sentado para almoçar, você percebe que o pensamento de comer faz você se sentir enjoado. Você se deita e dorme por algumas horas. Quando acorda, percebe que só piorou. Seu peito está apertado, e você tem uma tosse seca que não cessa. Você se pergunta: é assim que isso é sentido? Você vasculha seu armário de remédios em vão e finalmente encontra um termômetro na parte de trás do seu armário. Você o segura debaixo da língua por um minuto e depois lê o resultado: 38,90. Droga, você pensa, e rasteja de volta para a cama. Você diz a si mesmo que pode ser apenas a gripe comum, e mesmo que o pior venha a piorar, você é jovem e de ainda saudável. Você não está no grupo de alto risco.

Você está certo, é claro, em certo sentido. Para a maioria das pessoas infectadas com o coronavírus, isso é o máximo até onde pode ir. Com descanso na cama, elas melhoram. Mas por razões que os cientistas não entendem, cerca de 20% das pessoas ficam gravemente doentes. Apesar de sua juventude, você é uma delas.

Depois de quatro dias de febre furiosa e de se sentir dolorido, você percebe que está mais doente do que qualquer vez você já esteve em sua vida. Você tem uma tosse seca que se agita tão forte que suas costas doem. Lutando para respirar, você pede um Uber e vai para a sala de emergência mais próxima. (Você deixa 376.345.090 de partículas de vírus espalhadas nas várias superfícies do carro e outras 333.443.865 flutuando pelo ar.)

No Pronto Sococrro, você é examinado e enviado para uma ala de isolamento. Enquanto os médicos esperam os resultados de um teste para o coronavírus, eles administram uma tomografia computadorizada de seus pulmões, o que revela “opacidades de vidro moído”, manchas difusas causadas pelo acúmulo de líquido, onde a batalha do sistema imunológico é a mais intensa. Não só você tem COVID-19, como também isso levou a um tipo de pneumonia intensa e perigosa chamada síndrome de dificuldade respiratória aguda, ou SDRA.

Com todas as camas regulares já ocupadas pelos muitos doentes da COVID-19, você recebe um leito em um quarto ao lado de outros cinco pacientes. Os médicos colocam você em um gotejamento intravenoso para fornecer ao seu corpo nutrientes e fluidos, bem como medicamentos antivirais. Depois de um dia da sua chegada, sua condição se deteriora. Você vomita por vários dias e começa a alucinar. Seu ritmo cardíaco diminui para 50 batimentos por minuto. Quando um paciente no quarto ao lado morre, os médicos pegam no ventilador que ele estava usando e te colocam nele. Quando a enfermeira enfiar o tubo endotraqueal pela sua garganta, você só estará meio consciente da sensação de que ele está indo cada vez mais fundo em direção aos seus pulmões. Você fica deitado lá enquanto ela coloca fita adesiva sobre sua boca para manter o tubo no lugar.

Você está desabando. Seu sistema imunológico se jogou em uma “tempestade de citocinas” – um excesso de intensidade que não está mais lutando apenas contra a infecção viral, mas também as próprias células do corpo. Os glóbulos brancos invadem seus pulmões, destruindo tecido. O fluido enche os pequenos sacos alveolares que normalmente deixam o sangue absorver oxigênio. Efetivamente, você está se afogando, mesmo com o ventilador bombeando ar enriquecido com oxigênio em seus pulmões.

Isso não é o pior de tudo. A intensidade da resposta imune é tal que, sob sua investida, órgãos em todo o corpo estão se desligando, um processo conhecido como síndrome de disfunção múltipla de órgãos, ou MODS. Quando seu fígado falha, ele é incapaz de processar toxinas do seu sangue, então seus médicos correm para ligá-lo a uma máquina de diálise 24 horas por dia. Mortas por falta de oxigênio, suas células cerebrais começam a morrer.

Você está flutuando no limite entre a vida e a morte. Agora que você entrou no MODS, suas chances são 50-50 ou pior. Devido ao fato da pandemia ter estendido os recursos do hospital além do ponto de ruptura, sua perspectiva é ainda mais sombria.

Deitado em seu berço, você meio que ouve quando os médicos ligam você a uma máquina extracorpórea de oxigenação (ECMO). Isso vai assumir o trabalho de seu coração e pulmões e na esperança de mantê-lo vivo até que seu corpo possa encontrar seu caminho de volta ao equilíbrio.

E então, você se sente inundado por uma sensação esmagadora de calma. Você sente que alcançou o nadir de sua luta. O pior dos perigos já passou. Com o ataque viral estancado, o sistema imunológico do seu corpo vai recuar, e você vai começar a lenta e meticulosa jornada para a recuperação total. Daqui a algumas semanas, os médicos removerão o tubo de sua garganta e afastarão o ventilador. Seu apetite voltará, e a cor retornará às suas bochechas, e em uma manhã de verão você sairá para o ar fresco e chamará um táxi para casa. E mais tarde, você vai conhecer a garota que se tornará sua esposa, e você terá três filhos, dois dos quais terão seus próprios filhos, que irão visitá-lo em sua casa de repouso nas redondezas de Tampa.

Isso é o que sua mente está dizendo a si mesma, de qualquer maneira, enquanto as últimas células do seu córtex cerebral explodem em ondas estelares, como as algas brilhantes em uma lagoa da meia-noite. Na ala de isolamento, seu eletrocardiograma vai para um tom estável. Os médicos tiraram o ventilador e o entregaram a um paciente que chegou esta manhã. Nos registros oficiais da pandemia COVID-19, você será registrado como vítima nº 592.

Tradução de Ricardo Sasaki, do artigo original How the Coronavirus Could Take Over Your Body (Before You Ever Feel It), publicado em https://nymag.com/intelligencer/2020/03/the-story-of-a-coronavirus-infection.html em 18 de março, 2020

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Este é o blog pessoal de Ricardo Sasaki, psicoterapeuta, palestrante e professor autorizado na tradição buddhista theravada (Upasaka Dhanapala) e mahayana (Ryuyo Sensei), tradutor, autor e editor de vários livros, com um grande interesse na promoção e desenvolvimento de meios hábeis que colaborem na diminuição real do sofrimento dos seres, principalmente aqueles inspirados nos ensinamentos do Buddha. Dirige o Centro de Estudos Buddhistas Nalanda e escreve no blog Folhas no Caminho. É também um dos professores do Numi - Núcleo de Mindfulness para o qual escreve regularmente. Para perguntas sobre o buddhismo, estudos em grupo e sugestões para esta coluna, pode ser contactado aqui: biolinky.co/ricardosasaki

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